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Lucio Carvalho para a Revista Marcela, março, 2023

Ézio: Essa primeira edição da Revista Marcela propõe como tema novas visões sobre o território da pampa. Buscar essas novas visões passa por fugir de estereótipos como do gaúcho, do interiorano desinformado, da história do RS sempre vista a partir da perspectiva bélica e da relação de antagonismo entre urbano e rural. Como você lidou com esses pontos na hora de criar o seu texto e não cair no lugar comum?

LCJ: Vocês partirem da premissa de que eu não caí no lugar comum muito me alivia. Eu mesmo não tenho isso tão certo comigo… E acho que não tenho porque guardo muitas dúvidas se é mesmo possível a quem escreve sobre uma paisagem específica (poderia ser o cerrado, o sertão, a floresta amazônica) fugir ao caldo cultural que a forma e, goste-se ou não, todos são permeados efetivamente por estereótipos e preconceitos endógenos e exógenos. É complicado, penso, estabelecer uma formulação literária que dê conta de um ambiente sócio cultural tão, digamos, sobrecaracterizado. Penso que, no meu caso, me sinto mais feliz quando não descarto a dimensão afetiva e não procuro eu mesmo resolver situações culturais complexas, pois seria fantasioso. Ao longo do tempo que venho escrevendo com o pano de fundo da região pampiana, tenho procurado abordar com respeito situações que conheci, mas que sempre estão se transformando, às vezes sem que possamos percebê-las. De certa maneira, tenho buscado conscientemente desvincular a imagem de violência e brutalidade que se colou à população rural de um modo geral. Não é tão difícil assim, basta desviar o olhar para outros focos poéticos, que há muitos.

Ézio: O que um escritor da sua região pode dizer diferente dos demais do estado do RS?

LCJ: Bom, desde que ele trate de sua localidade e procure representá-la de alguma forma, penso que qualquer autor deva ser fiel a si mesmo, ou seja, procurar ser sincero com a sua compreensão e defender sua liberdade a despeito das muitas coerções culturais existentes. Pensando especificamente na região da qual provenho, a fronteira sudoeste e a região da Campanha, penso que há certo acúmulo de ideias quanto a essa população, mas uma escassa reflexão escrita que parta desse exame mais autônomo. De certo modo, a iniciativa da Revista Marcela é excepcional por permitir que todo esse complexo relacional seja exposto com a atenção e o afeto merecido. Penso que os escritores de um modo geral costumam fazer isso em relação ao lugar de onde provêm ou onde vivem. A questão de isso vir a público, ser lido e debatido é muito benéfica socialmente, ainda que não seja necessária a formação de um consenso homogêneo valorativo. O convívio democrático é sempre de alta exigência.

Ézio:. De que forma você pensa na literatura hoje? Como espera que seu texto atinja os leitores?

LCJ: Penso muitas coisas desconexas, eu acho. Talvez até que aprecie mais a literatura de outros tempos que a “de hoje”. Mas eu realmente não me preocupo muito com os leitores. Acho que cada texto tem seu leitor e, às vezes, a boa sorte acontece deles se encontrarem. Mas realmente não aprecio a escrita que visa agradar aos leitores e, bem, me parece que atualmente é muito praticada, daí minha predileção para quando o leitor não comandava tanto assim a mente dos autores e nem os autores eram tão facilmente comandados pela audiência e etc.

Ézio: Quais são os autores que formaram seu imaginário de leitor e escritor?

LCJ: Na minha idade (rsrs), muita gente. Acho que o mais certo a dizer quanto a isso é que sempre fui um leitor sem preconceitos e que procurou aproveitar o máximo o que me havia de disponível. Tive a boa sorte de ter o hábito de leitura disseminado na família e entre meus amigos desde a adolescência, então meu “método” sempre foi esse: ler de tudo e o máximo possível. Evidentemente tenho preferências, mas mesmo estas não são pela autoria, e sim pelo conteúdo. Então tenho nessa coleção muitos poetas, contistas, romancista e ensaístas. Talvez ficasse enfadonho listá-los, mas, sem dúvida, a leitura da poesia de Fernando Pessoa, dos contos de Kafka, do épico de Érico e as narrativas de Garcia Márquez estão entre as leituras que mais me impactaram quando comecei a ler literatura na adolescência. Antes disso, gostava muito de histórias folclóricas e mitológicas. Bem, continuo gostando muito de tudo isso, fora o que foi sendo agregado nesse meio tempo.

Ézio: O que motiva você a escrever com uma multiplicidade de narrativas visuais na atualidade?

LCJ: Competir com o audiovisual vem se mostrando uma tarefa inglória, como se sabe. Por outro lado, mesmo as narrativas visuais tem um texto de fundo e as escritas também podem conformar um estado perceptivo “como se” de um filme. O que talvez ainda seja um campo exclusivo do escrito é capacidade polissêmica, de gerar sentidos múltiplos no lugar dos seriais, ampliando a capacidade subjetiva de interpretação de cada pessoa.

Ézio: Qual tipo de gênero literário você prefere na hora de escrever (Poesia, conto, narrativas longas, dramaturgia)?

LCJ: Bem, me parece que cada ideia pede uma espécie de texto especifico. Uma ideia com um arco mais longo precisa de mais espaço, um conto não costuma ser tão aberto, um poema é uma forma ainda mais sintética. No entanto, a depender de quem escreve e de como escreva, qual seja o gênero o efeito obtido é sempre inesperado. Essa é mesmo a riqueza da literatura, extrapolar de suas recomendações e surpreender o leitor.

Ézio: Na hora de conceber o texto você possui um padrão? Primeiro pensa nos personagens, no cenário, no tema, no final do texto?

LCJ: Penso que “padrão”, não… Nem etapas, nem roteiros… De alguma maneira que não sei explicar, tudo vem um pouco junto e o texto é quem vai organizando os elementos. Sei que existem pessoas que usam técnicas aprendidas em oficinas e guias, mas eu penso que a leitura em si mesma, a leitura mais atenta e analítica, é quem melhor ensina a escrever. Uma boa dica também é conhecer o método de trabalho de grandes escritores, mas, mesmo assim, penso que é mais proveitoso que cada qual descubra como funciona melhor a sua própria concepção e execução.

Ézio: Que sentimentos o aproximam mais da escrita? Você escreve quando está triste, feliz ou isso é indiferente?

LCJ: Acho que seria estranho pensar que é indiferente ou, talvez ainda mais, que buscasse a escrita por um ou em busca de um estado emocional específico. O que me parece é que a escrita traz consigo um sentido de realização que se auto justifica, quer dizer, ele mesmo não resolve um estado emocional, sua capacidade maior é de induzir estados de pensamento capazes de emocionar as pessoas em suas particularidades. O contrário disso é uma escrita com viés sentimentalista e esta, embora funcione em muitos casos, bem, não é exatamente a espécie de escrita que procuro pessoalmente fazer.

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Lucio Carvalho nasceu em Bagé (1971) e vive atualmente em Porto Alegre. É especialista em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Servidor concursado, atua como analista e bibliotecário jurídico no Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Tem reportagens, artigos, resenhas literárias e textos de ficção e poesia em publicações de todo o país. É autor do livro de contos A Aposta (Movimento, 2015), A crise da representação rural na literatura rio-grandense (Fi, 2020) e de outros títulos. Seu mais recente livro é uma antologia de sua poesia escrita entre os anos de 1986 e 2020, publicada em 2022, Inventário (TAN, 2022). É escritor, crítico literário e coordenador editorial da Sepé – Revista de Literatura.

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Idealizada por Thomaz Albornoz Neves, a chancela tan ed. reúne títulos  de autores cisplatinos e afins. São obras de fotografia, arte, poesia, ensaio e relato escritas em português e espanhol (com alguma pitada de portunhol). O empreendimento é solitário, sazonal e sem fins lucrativos. Os livros têm a mesma identidade gráfica e são, na sua maioria, ilustrados com desenhos do editor. A tiragem varia entre 75 e 300 exemplares numerados.