Antologia Inventada, de Rafael Courtoisie
Livro conceitual, com pulmão infinito. A inteligência poética é fina, sutil, caleidoscópica. O leitor se vê diante de uma virtuose expressiva que se coloca ao serviço das vozes que cria ou incorpora. É raro encontrar tanto corpo poético quando o conceito revela-se tão original. A arte conceitual tem essa fraqueza, corre o risco de esgotar-se no encanto da ideia. E a ideia, a longo prazo, costuma tornar-se árida pela repetição. Não é o caso aqui. Antologia Inventada é um logro a cada novo poeta abordado, um tour de force e uma realização de plenitude do ofício.
O poeta uruguaio Rafael Courtoisie escreve poemas de Baltasar Brum, Svetana Staiev, Jean-Paul Sartre, Camille Claudel, Lao Tse, Sylvia Plath, Alfonsina Storni, Alaíde Foppa, Ludwig Wittgenstein, Ferreira Gullar, Czeslaw Milosz, Raymond Carver, Virginia Woolf, Tzvetan Todorov, Itzel Xochitzin, Elizabeth Bishop, entre outros renomados ou inventados autores da literatura do passado, presente e do futuro.
Edição bilíngue, com a tradução de Thomaz Albornoz Neves.
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Da introdução escrita pelo autor:
Todos os textos deste livro foram sonhados e escritos por mim. Há ocasiões em que o poeta do século XXI deve ser muitos para ser um, para encontrar essa essência que vem desde o fundo da história e desde o começo da literatura e nos torna humanos.
Meu avô literário, Isidore Ducasse, o conde de Lautremont (L’autre à Montevideo), afirmava que a poesia deve ser tecida por todos.
Esta Antologia Inventada está feita pelos poetas que amei e de alguns (poucos) que não amei mas que fazem parte de mim; reúne poetas inventados e outros que foram poetas, mesmo que não escrevessem versos conhecidos: Juan Rulfo, Franz Kafka, Ludvig Wittgenstein. Também surgem alguns que são a negação da poesia: aqui pode ler-se um “inédito” de Donald Trump que revela quem matou Kennedy, entre outras coisas terríveis.
Antonio Machado diz: “Se mente mais da conta / por falta de fantasia: / também a verdade se inventa”. Aqui não se mente nem um ápice: se diz a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade, mas para dizê-la recorro a um jogo de máscaras.
Esta edição reúne textos desconhecidos de autores reais, vivos ou mortos, textos reais de autores desconhecidos, imaginários, possíveis ou impossíveis; textos que constroem uma poética polifônica, heterodoxa, múltipla.
É minha própria voz a que tenta desprender um mundo de vozes entre a intertextualidade e a invenção que é, como teria dito Octavio Paz, “homenagem e profanação”, desconstrução e nascimento.
Esta Antologia Inventada escrita com meu próprio punho e letra (em ocasiões mais com o punho que com a letra, às vezes mais com a letra) é, mais que um livro de poesia, um projeto cultural que emprega, entre outros procedimentos, talvez o contrário de um exercício de “heteronímia”: uma prática de assimilação e soma dialéctica das vozes da tradição para criar desde a tormenta e o salto, desde a ruptura com essa tradição.
Rafael Courtoisie [Montevidéu, 1958] é um dos mais reconhecidos e premiados autores ibero-americanos contemporâneos. Membro correspondente da Real Academia Española, membro da Academia Nacional de Letras del Uruguay, integrante do International Writing Program (Iowa University). Antología Inventada foi traduzida e editada en francês, inglês e italiano. É autor de vários volumes de contos, poesia e de quatro novelas.
Poema XLV de Antologia Inventada, lido por Thomaz Albornoz Neves no segundo vídeo abaixo:
Inédito de Raymond Carver: Fisher’s Short Story
Meu pai tinha um modo especial
para enfiar a isca no anzol
quando íamos pescar trutas
era um modo aprendido com seu pai
e que meu avô aprendeu com o seu pai
de forma que eu sou a quarta geração
em pôr em prática o segredo.
Hoje fui com meus filhos rio acima, remontamos
dois quilômetros além da cascata
armei as varas de fibra de vidro e os molinetes
especiais de linha de náilon transparente, capazes
de resistir noventa libras, muito mais
do que pesa uma truta. “É para caçar
tubarões?”, zombou meu filho maior.
“És Hemingway pescando no Golfo,
papai?”, riu o primogênito.
“Não precisa tanto”, acrescentou meu outro
filho: “As trutas estão cada vez menores,
pela contaminação”, afirmou.
“Sim, o glifosato causa câncer
nos peixes”, zombou o maior.
“Vamos jantar trutas muito magras,
envenenadas”, disse. Y acendeu uma bagana
de maconha. Convidou o irmão
menor e me olhou com deboche
enquanto eu colocava a minhoca viva
no anzol, tal como aprendi
com meu pai. “És um sádico, Daddy”,
disse meu filho pequeno. “Que mal te fez
esse pobre verme? Que crueldade,
Dad! ¿Nunca ouviste falar em veganismo?”
A minhoca se movia, parecia
um signo vivo de interrogação
na tarde de Iowa.
“Os escritores são pescadores
frustrados”, disse o maior. “Ou será
o contrário?”, acrescentou o outro.
Os dois riam, riam
às gargalhadas pelo efeito
da canábis. Pareciam aproveitar muito
o momento. Muito.
Acho que meus filhos não gostam de pescar.
Nem de ler. Eles gostam
de ver como o fumo sobe
ao cérebro.
O pai do meu avô,
meu avô e meu pai
eram bons pescadores
de trutas.
Mas as trutas estão
cada vez menores
e escassas.
Acho que a tradição
morrerá
comigo.
Especificações:
Brochura, 144 pgs.
Dimensões: 20 x 13 cm
Exemplares numerados, 68 em estoque. 1ª edição.
Idioma: Espanhol / Português
Ano de publicação: 2021
R$69,00