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Celeiro do golfe popular brasileiro


A história do Clube Campestre de Livramento confunde-se com a própria história do golfe brasileiro.
Situado no extremo sul do Brasil, na fronteira com o Uruguai, foi por aqui que o esporte chegou ao Rio Grande e foi aqui que, em 12 de outubro de 1999, foi fundado o primeiro projeto social do golfe brasileiro, a escola Boa-Bola, destinado à inclusão de crianças carentes, formação de caddies, de aspirantes a profissionais e de funcionários de apoio, seja na manutenção da cancha, seja na organização funcional do esporte.

São turmas pequenas, não mais de 20 alunos por temporada. Em 22 anos de existência, a escola atingiu quase quinhentas crianças e é certo que através dos elevados valores deste esporte elas saíram do projeto para a vida mais preparadas do que entraram. As aulas são individuais e o trato é sempre pessoal, o grupo existe para o convívio, mas a transmissão dos fundamentos nunca é coletiva.

Baseia-se fundamentalmente na transmissão espontânea de conhecimento. Os alunos aprendem ensinando. Aquele menino que sabe algo, fazer o grip, por exemplo, instrui o que não sabe nada, de modo a que em uma escala de aprendizado cheguem à adolescência conhecendo a técnica do swing e como transmiti-la.
Nossos professores portanto, são feitos em casa. Da mesma maneira, aqueles que por temperamento preferem aprender sobre o cuidado dos greens ou a organização dos handicaps, rankings e torneios passam a ocupar-se dessas atividades paralelas visando um mercado de trabalho hoje em franca expansão.

Para que se tenha uma ideia foram os funcionários formados no Campestre que, em sua grande maioria, construíram os dois mais novos campos de golfe do Rio Grande do Sul, o de Bagé e o de Santa Maria. E dos 25 golfistas que disputaram em 2020 o mirrado tour gaúcho de profissionais, 14 são campestrinos.
Mas para entender os resultados alcançados por Sandro Gonçalves (segundo no ranking amador brasileiro em 2015), Herik Machado (recentemente Campeão Amador Argentino e Brasileiro, vencedor da Faldo Series) e Andrey Xavier (atual líder do ranking amador e Campeão do Orange Ball), precisamos voltar no tempo, ainda que brevemente. Porque, neste caso, tempo é um fator crucial se considerarmos que esses meninos são a ponta de um iceberg centenário.

 

 

O outro fator é o acaso. Não fosse pela Revolução de 1904 no Uruguai, o basco Pedro Irigoyen não teria emigrado de Montevidéu à fronteira e escolhido para estabelecer sua charqueada um vale de contornos suaves, salpicado de olhos d’água e protegido por cerros chatos de arenito na curva de um arroio claro e corrente. Nem os americanos da Armour Co. teriam trazido José Maria, o pai de Mario Gonzales, para construir seu campo de golfe justo ali naquele vale quando incorporaram o saladeiro de Irigoyen ao frigorífico.

Se o leitor está se perguntando o que aquilo teria a ver com isto, a resposta é: tudo. Primeiro porque o elemento essencial formador desses atletas é a cancha do Campestre. Esse circuito desgastante tanto para o físico quanto para a mente demanda desde o início paciência, perseverança e raça para ser enfrentado. Não à toa seu recorde em 18 buracos é de apenas -6 e se mantém por quase 40 anos.

Os declives, aclives e bandeiras cegas, suas bancas molhadas, roughs de flexilhas, barrancas erodidas, mais a bermuda agreste que varia de green para green, os tees desnivelados e fairways ondulados exigem que as articulações do golfista mirim se acendam cedo dotando-o de um repertório riquíssimo e complexo, cheio de microgestos que permitem compensar o terreno acidentado e a pobreza da manutenção desse secular campo de golfe.

Ao contrário de um swing armado e robotizado pelos grandes músculos, eles são flexíveis. Suas falanges, pulsos, joelhos e quadris seguem agindo mesmo quando submetidos a um movimento mais mecanizado, conservador e repetitivo como os aprendidos atualmente nas clínicas de alta performance. Os meninos são capazes de incorporar a solidez do estilo moderno sem, contudo, perder a criatividade e o improviso do golfe clássico da primeira metade do século XX. Aquele jogado pelo mais célebre filho dessas raias: Mario Gonzales.

E, segundo, porque o bairro criado pelos empregados do frigorífico respira desde 1915 o ar dos fairways. Seja como caddies, green keepers ou jogadores noturnos, seja como praticantes do golfe baldio, na praça ou no circuito mantido por eles a boca de ovelha atrás da Velha Charqueada e batizado de Campinho, a realidade é que o swing não é um movimento estranho para as crianças pequenas do lugar. Gerações cresceram nas ruas de terra vendo a bola voar de uma esquina à outra por cima dos telhados. Meu ponto é que essa intimidade com o swing criou o maior celeiro de golfe popular do Brasil.

Diante dos resultados, a CBGolfe (apoiada pelo R&A) passou a investir, ainda que timidamente, no projeto. O gargalo porém, está onde sempre esteve. A questão que se coloca é evidente. A popularização do golfe através de projetos sociais como o de Livramento depende da existência de um circuito profissional nacional que os absorva. Na falta da integração universitária do modelo americano e diante de um elitista circuito amador que há décadas se esgota em si mesmo este Golfe Raiz esbarra na profissionalização. Termina nela, quero dizer.

Não fosse suficiente, a recente chegada da franquia KIDS representa mais um obstáculo à inclusão das crianças carentes no circuito. Seu modelo de competição abole o handicap e nivela por idades. Pretender que um menino com nove anos, subnutrido, semianalfabeto e vindo de um lar disfuncional compita em igualdade de condições com uma criança da mesma idade mas com a estrutura social equilibrada, é de uma miopia cruel. Ou talvez seja apenas a mesma indiferença que condena o futuro deste esporte a mais um século de ostracismo amador.

 

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Idealizada por Thomaz Albornoz Neves, a chancela tan ed. reúne títulos  de autores cisplatinos e afins. São obras de fotografia, arte, poesia, ensaio e relato escritas em português e espanhol (com alguma pitada de portunhol). O empreendimento é solitário, sazonal e sem fins lucrativos. Os livros têm a mesma identidade gráfica e são, na sua maioria, ilustrados com desenhos do editor. A tiragem varia entre 75 e 300 exemplares numerados.