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O campo de golfe mais antigo

 

A cancha do Armour

 

 

No remoto início do século XX, em regiões como a nossa, campos de golfe eram abertos a fogo, foice e tração de canga. A arte consistia em permitir que o lugar fizesse a maior parte do trabalho, daí a máxima: “a natureza é a melhor desenhista do jogo”. Em função da topografia íngreme, José Maria Gonzalez desenhou um mapa com fairways sinuosos que acompanham o volume das bacias e convergem em leque ao topo da colina. O circuito é contínuo, sem cruzamentos e avança em sentido anti-horário.

Para resgatar o mapa original da cancha do Armour Golf and Country Club contamos com a ajuda de dois golfistas veteranos que cresceram nas décadas de 30 e 40 jogando aquele circuito. Com José Moreira, o Tintin, e Carlos Plínio Araújo, o Parafuso, caminhamos pelo campo do Campestre filmando as marcações do desenho perdido do Gonzalez.

O green de terra batida ressurge no momento em que Tintin crava a bandeira dentro de um claro círculo no meio do fairway, simulando para a câmera no meu ombro o buraco do extinto 5.
Parafuso dá a cacimba do 1 ou a castanheira do 7 por testemunha do que havia em torno e, em um piscar de olhos, a velha cancha fantasma passa pela paisagem. O bosque de eucaliptos volta ao coração do circuito e o parque de arborizados corredores que agora percorremos é somente várzea, pastagem. A parelha de mulas arrasta seis metros de lâminas rotativas e marca o traçado que sobe, desce e contorna as coxilhas. Trazido por Parker de Buenos Aires, um jovenzinho espanhol chamado Gonzalez conduz o corte desde o platô superior onde será construída a casa do clube até o limite alagadiço do banhado do Arroio da Carolina. Houvesse por estas bandas algum paisagista, a cena à óleo estaria sobre a lareira da sala dos troféus.

Parafuso era guri e os roughs laterais tinham tanto pasto que não o deixavam procurar as bolas por causa das cruzeiras e corais venenosas. Eram controlados a fogo, ele conta com um gesto amplo, e vemos as chamas no pastiçal correrem em linhas iluminando os fairways ao cair da tarde.

O menino Tintin ceifava os roughs para a vaca leiteira do seu pai (outro imigrante, este da Galícia) quando viu um paisano de bombachas vindo na direção da bolinha que quicara no campo ao seu lado. Pensou que era um gaúcho, mas corrigiu-se, gaúchos não falam assim, nem usam essas meias compridas por cima das calças que de longe ele sempre confundia com botas.

Apontando o lugar exato do 1 onde há mais de 60 anos ocorreu o encontro, Tintin recorda que depois de o Mr. Stoutt acertar o approach, imitou com a foice o seu swing. E que talvez por ser o filho do Galego Francisco mais que pela qualidade da imitação, Mr. Stoutt convidou-o a ir mais tarde ao escritório da Companhia. Assim recebeu os primeiros tacos emprestados e a permissão, tão exclusiva então, para jogar golfe.

Tintin foi golfista durante toda sua vida. Chegou a 5 de handicap. De acordo com Parafuso, a cancha era tão rústica que não permitia baixar disso. Salvo os excepcionais Mário Braga, nos anos 30 e 40, e o Humberto Tejiacchi, nos 50, que chegaram a 3 ou 4. E saíram do fairway do 1 para marcar o green do 3, também visível ainda hoje no elevado platô antes da bacia, ponderando qual dos dois teria sido o melhor se tivessem competido, sem deixar de concordar que nenhum entre os outros golfistas da primeira linha, fosse o velho J. S. MacBey, o Pedro Cepeda, o Ernesto Cabillón ou o Negro Etchepare, os venceria. Bem, pensei, sem contar o clã Gonzalez, tenho aí os melhores armouristas que passaram por estes fairways entre a década de 20 e o final dos anos 50.

Estamos nas marcas de saída do antigo buraco 7. Parafuso descreve onde ficavam as caixas com terra e água para os montinhos de barro usados antigamente como tees. O veterano Pedro Silva, também criado no bairro do Armour, draiva das marcas dos cavalheiros situadas na outra ponta do lago e se aproxima pela taipa rente à cerca.

Tintin conta que fazemos a filmagem do circuito do Gonzalez, identificando os vestígios da velha cancha na topografia do campo. Dá o exemplo dos valetões abertos para a drenagem que ele conheceu como hazards e que hoje são apenas ondas nos fairways e também daquele retângulo de pasto depois da lagoa do 7 que vira palha na estiagem por causa do saibro da quadra de tênis ali enterrada. É uma busca arqueológica, diz em tom de brincadeira, tem outro campo debaixo do que se joga agora.

Entrando no assunto, P. Silva recorda ter estado em um almoço com José Maria Gonzalez na casa do Vasquito Cabillón, lá pelos inícios dos anos 50. Pedro, Parafuso e Tintin lembram que, enquanto desenhava o campo, Gonzalez conhecera Clara Cabillón, irmã do Vasco. O vejo tomado pela futura esposa e pela cancha que faria, pensando em uma ao estar com a outra, os fairways nascendo assim, sob o encanto do encontro. Quem afirma que o destino de certos filhos começa a ser escrito pela história dos pais citaria o caso de Mario Gonzalez, nascido dessa união e maior golfista que o país já teve.

Eu sabia que estava coletando um raro depoimento dos remanescentes de um período sem registros conservados. Contudo, por mais que a lembrança de um instigasse a do outro, os personagens e os acontecimentos são vagos. É como se só nos pormenores o passado estivesse inteiro. Não há um panorama das décadas, apenas cenas soltas sem pano de fundo.

A floresta de eucaliptos tomada por centenas de caturritas. O banho de sol dos lagartos nos greens do banhado. O mastro de taquara das bandeiras. Os roughs com colas de zorro na altura do peito dos jogadores. O quadro de vidro no corredor do Casarão-dos-Solteiros onde os desafios e o valor das apostas de golfe eram anotados. A roletinha pela qual se era admitido na cancha. A sala de esgrima nunca usada. A biblioteca que só existiu na planta do arquiteto. As duas quadras principais de tênis onde hoje é o campo de futebol do Sina-sina. As calças knickers ou o chá e o bridge das senhoras. O campeão Mário Braga com seu bizarro stance de pés juntos, a perna direita indo para trás com a tirada do taco, ou o irlandês canhoto de quem ninguém lembra nada a não ser que jogava toda a volta com as costas de um putter. Nenhum sentido para o todo. Detalhe, é o que a memória prefere.

Durante esta tarde soubemos que Parafuso procurava no matagal o galho mais reto de sarandi para depois, untado em banha, deixar tostar no calor do fogão à lenha e pregar nele a cabeça de uma brassie restaurada. Que um dos niblicks usados para o approach era aqui chamado de spoon pelos americanos e de cuchara pelos castelhanos, que as madeiras tinham apelidos de nariguda ou barriguda e que a companhia providenciava a vinda do equipamento, descontando depois da folha dos funcionários golfistas.

Fomos ao lugar exato de um temido sumidouro de bolas que foi drenado e não existe mais, chamado “Quadrado do 7”, e também ao extinto bosquezinho de plátanos na colina ao final da 2ª avenida onde o galpão de zinco das ferramentas do campo refletia o sol e ofuscava os golfistas.

Conhecemos quais plátanos e eucaliptos já eram fabulosos quando Tintin ainda não havia nascido, e aprendemos que para preparar os primeiros greens de terra havia um socador redondo, um pequeno rolo de cimento, um rastilho de cerdas macias e um rodo liso. Que dos greens de terra vieram os de roseta, afinados por uma máquina de corte importada no final da Segunda Guerra. Que para arrancar as ervas daninhas das delicadas leivas transplantadas das várzeas da Charqueada do São Paulo era usado um ferrinho chato com uma ponta torta e a outra de pua, que as barrancas eram feitas à gadanha e que para evitar que os cachorros do bairro esgaravatassem a adubação feita com farinha de sangue, Parafuso foi vigia de green e passou noites em claro. Noites frias, estreladas e silenciosas, ele conta com aquele olhar de quem recorda.

Os eventos não se conectam. A cronologia é tão esparsa que, ao término da filmagem, pensamos em termos de eras: a do Armour Golf and Country Club e a do Clube Campestre de Livramento.

O menino Tintin cresceu, tornou-se comprador de gado para o Frigorífico e, no devido tempo, substituiu Mr. Stoutt na função de green keeper do campo. De caddie, Parafuso passou a dirigir o trator que cortava os fairways no lugar das mulas e, na primeira oportunidade, viajou a Porto Alegre para aprender a dar aulas de golfe.

Em 1959, quando Tintin ajudou a intermediar a venda do Armour Club e foi, seguindo ao Dr. Hugolino Andrade e ao empresário João Carlos Brenner, um dos 40 fundadores do CCL, Parafuso já havia desistido de ser professor e mudado de ofício. A minguada média de quatro aulas por semana não aumentaria nem mesmo com a chegada dos novos sócios. Seria necessária toda uma década e o surgimento da segunda geração de golfistas campestrinos para que a lenta transição do exclusivista Armour ao Campestre terminasse e o esporte desse finalmente o seu salto na fronteira.

Quem ouvir sobre os primeiros anos da cancha terá a impressão de um território demarcado e sob proteção diplomática, uma espécie de luxuoso pátio em comum ao fundo das residências da 1ª e 2ª avenidas, destinado apenas aos altos escalões de uma companhia norte-americana que alcançou empregar no seu tope 80% do operariado local. Que das quatro décadas de existência do Armour Golf and Country Club não nos fosse legada tradição golfística alguma é sintomático tanto daquela mentalidade segregadora, limitada pela imagem do mundo como colônia quanto do nosso provincianismo. Não restou sequer, esquecidos no fundo de uma gaveta destas escrivaninhas cortinadas de carvalho, o rol dos jogadores, seus handicaps, a grade dos recordes do percurso ou os cartões de escores. E, exceto o escudo com os vencedores da Taça 4 de julho, não há no acervo do clube marcos de outras competições.

Por outro lado, é evidente que a passagem dos americanos introduziu o golfe no Rio Grande, e que o esforço feito por nós, da comunidade local, para preservar tal patrimônio de valor inestimável, cancha incluída, foi facilitado pelo Frigorífico. Caso contrário, o Armour Club teria o mesmo destino do conjunto arquitetônico leiloado, da fábrica demolida por uma empresa sucateira ou das centenas de hectares de arvoredo devastadas por loteamentos imobiliários suburbanos.

Não sabemos se a cancha terá os 18 buracos do projeto que estava sobre o feltro da mesa de bilhar ou se o percurso atual é o definitivo. Seja como for, depois da tarde de hoje, graças ao Tintin e ao Parafuso foi possível esboçar no caderno de notas o mapa de onde ele veio.

 

 

Para o relato completo do mapa perdido de Jose Maria Gonzales em

 

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Idealizada por Thomaz Albornoz Neves, a chancela tan ed. reúne títulos  de autores cisplatinos e afins. São obras de fotografia, arte, poesia, ensaio e relato escritas em português e espanhol (com alguma pitada de portunhol). O empreendimento é solitário, sazonal e sem fins lucrativos. Os livros têm a mesma identidade gráfica e são, na sua maioria, ilustrados com desenhos do editor. A tiragem varia entre 75 e 300 exemplares numerados.