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Diário de Golfe 1999-2000

Verão

 

Novembro, 1999

26
Com folhas, a rajada de vento entre a bola e o buraco.

O mormaço infla a altura. A leveza suga o voo da bola. O verão expande o céu e encurta a cancha.

28
Bato bem. O sol da manhã me favorece. Molho a ponta da toalha e limpo a bola como se a água da cacimba fosse benta.

Se a tacada é perfeita, não a sinto minha. O erro sim, é sempre meu.

Por toda a cancha de golfe um lençol de orvalho que o corte do trator recolhe. Em listas verdes no campo prateado.

Aroma de pasto recém-cortado. Como quem atravessa um aquário. E se encharca de ar.

Pensar na tacada, não no movimento. Que o voo escolhido para a bola faça o swing.

Rastro da bola no orvalho desenha a caída ao buraco. Nada muda tão rápido a velocidade dos greens quanto o sereno evaporando.

29
Se caminho ao tiro seguinte mantendo a respiração serena, o poder de concentração aumenta.

O swing é mais nítido, o pouso da garça mais lento.

30
Há algo em recorrer o mesmo circuito dia após dia e ele ser diferente a cada ronda que rejuvenesce.

Aqui no oeste da Campanha tudo é mais sólido. O céu compacta a terra e a matéria pesa mais em cada coisa.

O espaço é quase mineral. O swing e a bola no ar enfrentam antes essa coesão dos elementos. E o corpo acostuma. Embrutece. Perde a leveza do litoral onde esteve.

Dezembro

5
O mesmo abutre de ontem desparafusando o próprio voo sobre o green do 6.

Drive no 11 entre as pandorgas. O golfista crava o tee atrás das marcas e calam os roncadores. Para na bola e as linhas embarrigam caindo juntas no céu sobre o fairway.

Quantas vezes já presenciamos o golfe invadir a criança que vê pela primeira vez o jato de uma bola no céu da Carolina…

8
Quem chega pela primeira vez no Campestre ou quem retorna depois de tantos anos, tem a impressão de que a cancha já estava aqui antes de ser feita, tal a forma com que o trajeto acompanha o terreno acidentado. Mas é o tempo, polindo os contornos dos aterros, assentando barrancos e assimilando as drenagens, que faz parecer natural o que foi criado pelo homem.

Meu tipo de lugar, quanto mais antigo, mais valioso.

9
Ele perde hoje como perdia há duas décadas. Os melhores swings não fazem, necessariamente, jogadores melhores.
Testemunhar a economia de movimento dos novos golfistas gerando uma potência desproporcional para o swing da minha geração, faz com que nos sintamos remanescentes de outra era do golfe. E nos envelhece mais que o próprio tempo.

14
Quando eu vinha de férias visitar minha família, bastava apoiar os Wilson 1200 no chão – a lâmina afiada, seu metal forjado, o cheiro de couro velho da bolsa e das capas amarelas das madeiras – para pôr todo o meu corpo na sua posição de origem.

O taco, o ferro 8, era o guia-de-cego do movimento e reabria num passe o apagado sulco do swing no ar.

Essa memória corporal tinha uma bossa, que dá ginga ao swing. Era um estado de juventude. Perdeu-se com os 1200 furtados da minha picape durante um jantar às vésperas do Aberto do Uruguai, em Punta Carretas.

15
A rotação dos ombros que tentávamos copiar do professor Flores era acompanhada pelo giro das cadeiras e dos joelhos em uma única espiral ascendente. Buscávamos esse clássico instante do swing que superpõe o calcanhar esquerdo erguido e o início da volta do quadril enquanto o taco ainda está subindo.

Flores insistia sempre com o latigazo e o cruce de manos no contato. Quando a bola decola, ele dizia para ilustrar o relaxamento do corpo, sentimos os braços se soltando dos ombros e as mãos lançadas para longe dos braços pelo peso da cabeça do taco.

Sua terminação tinha o olho direito no voo da bola, a aba do chapéu roçando o ombro e a fivela do cinto na direção do alvo. Um chapéu de gangster marrom e um cinto social de couro rachado.
Era um swing redondo, em alguns pontos ainda devedor do antigo giro no barril usado para compensar a flexibilidade das varas de nogueira com que o nosso professor jogava nos anos da sua formação. Anos 30, em Montevidéu. Um swing que atacava com as pernas e dirigia o voo das bolas com as mãos e os pulsos. Nós não sabíamos, mas as varas de aço com que jogávamos na década de 70 já permitiriam um estilo mais compacto. Semelhante ao de hoje.

O swing da Velha Escola embalsamado pelo ar de canchas paradas no início do século XX, como a do Campestre era quando nós começamos nos anos 70. Em que outro campo de golfe do mundo um estilo tão antigo teria durado tanto tempo?

19
Na cancha todos os dias, com qualquer clima.

Sem instrutor, com a câmera no tripé e o espelho na jaula de casa. A jaula é a lona da picape pendurada pela corda de varal entre a pitangueira e o jacarandá aos fundos do pátio.

Mesmo estudando as imagens gravadas, nunca sei se o swing que faço é realmente aquele que sinto estar fazendo. O swing não está na sua imagem.

É estranho como não me sinto no corpo nem na mente ao bater na bola. Eu estou inteiro no swing.

20
O swing de golfe é feito de falsas sensações e reações involuntárias. Só o voo da bola diz a verdade.

Reconhecer os pontos de segurança no giro para onde retornar quando se perde o movimento.

Fixar os fundamentos, é do que se trata. Fixar fundamentos para onde retornar quando o swing perder sincronia.

 

 

Janeiro, 2000

2
O green sobe com grama a favor, difícil medir a velocidade. Birula diz que vê a bola rolar do buraco até o marcador e lê a caída que eu não leio.

Essa corda que o olhar puxa do buraco até a bola antes de patear é de equilibrista.

3
O arco de uma tacada na jaula do pátio, por melhor que seja a tacada, será sempre um arco interrompido. Bater na lona é igual a patear sem buraco.

Jaula é para repetir o tempo do swing e ouvir o sopro da vara. Para centralizar o impacto enquanto chove.

Depois da chuva, bater bola no 2 libera o movimento abafado pelas tacadas na lona. A sensação do swing parece continuar no ar, dirigindo o voo da bola.

Molhadas, as bolas de treino somem ao entrar na sombra dos pinheiros e brilham ao passar pelas frestas de sol entre as árvores. Punches de ferro 4.

5
Treinar um detalhe de cada segmento do giro por vez. Remarcar o finish. Fazer durar a presença do swing no voo da bola.

Ao armar cada stance o golfista entra numa dimensão do tamanho do arco do swing.

O giro feito pelo taco ao redor do corpo abarca o céu por onde voa a bola. O swing abarca o alvo.

No rastro da bola voando o silêncio se fecha, volta a ser inteiro.

Abrir mão do catador. Se quem bate junta as bolas, cada tacada de treino vale como na cancha.

7
Começar a rotina pelo alvo.

Sempre no ar, o swing de prática. No ar para acelerar no fundo.

O divot sem bola, nós sabemos, agride a cancha.

Sair do swing de prática, alinhar a face do taco, fazer o grip e tomar a postura, aliviar a pressão dos dedos para sentir o peso da cabeça no amague. Um peso de ponta de flecha.

Marcar um ponto na frente da bola e apontar ali. É a única preocupação com a linha que se deve ter.

Diminuir o alvo até torná-lo mais nítido no centro da paisagem. Como se ao redor estivesse embaçado. (Golf Digest, 1971.)

O olho físico está na bola, o olho mental está no voo da bola à bandeira.

Treinar bater com a imagem da bola voando na mente.

A sombra da bandeira some no buraco. Meio-dia de verão.

Para quem joga de manhã, a pressão dos últimos buracos aumenta com o calor do sol. Apesar dos greens mais firmes e pisoteados com o passar do dia, é melhor decidir os jogos ao cair da tarde. O 18 ao poente.

9
O mosquito preto parecido a um astronauta com mochila de foguete nas costas que ninguém sabe o nome. A mosquinha com asas de celofane em forma de trevo que pousa na bola e atrasa a tacada. O zangão do Peñarol que responde ao sopro do taco acelerando o zumbido ao redor do swing de prática.

Lixar os grips, afiar as raias gastas, evitar que as varas das madeiras rocem nas bordas da taqueira com anéis de fita isolante colorida.

Sabemos no rasante que é o abutre de antes pelas plumas que faltam na asa. O mesmo abutre velho.

E aqui, batendo bolas de novo, na sombra do mesmo eucalipto, cravando agulhas de vodu no boneco do swing. Ontem fez vinte anos.

12
O rebote do trampolim retumbando dentro da cova debaixo da piscina que é a casa-dos-tacos.

A coleção de tees antigos na caixa de bolas e o inconfundível chocalho que ela faz.

Couro lustrado, cera e talco para sapatos, cola para tacos, álcool para as seringas dos grips e as flanelas das tabuletas. Devia ser seco mas é úmido, o cheiro de lar da casa-dos-tacos.

O cano de deságue desativado no meio da parede contra o green de prática onde nasceu a andorinha e para onde ela volta para chocar seus ovos a cada início de verão.

A etiqueta que ainda conserva o nome na porta dos armários. As vezes em que, durante o jogo, certos lugares do campo evocam o swing de um, o caminhar de outro. Os jogadores que nos deixaram.

A busca coletiva pela bola perdida.

Bater na sola ao sair do bunker para evitar o rastro de areia no green.

A parada na ponta do pé para não pisar a linha do companheiro no putt.

O golfe é feito de gentilezas.

Por isto e aquilo e tantas outras coisas miúdas – a presença do Flores ainda viva no swing dos velhos amigos – o golfe é muito mais do que simplesmente ir à cancha e praticar um esporte.

16
Repetir o movimento bola após bola. É o corpo quem recorda algo que o golfista nunca soube.

O que se aprende sem saber, nos primeiros anos de golfe, é o interior do swing. Talvez por isso seja tão difícil aprender já maduro. Há dimensões do jogo que não se aprende sabendo.

Na medida em que desperto a memória do movimento, retornam as sensações e a forma como eu costumava reagir jogando. Reencontro o menino que fui conservado pelo swing de golfe.
Também a cancha parece preservada pela própria atmosfera como se o seu século de existência desacelerasse a passagem do tempo enquanto a percorremos.

Nunca serei tão eu mesmo quanto nos meus treze, catorze anos. Todo o resto é resquício, vestígio, daquela integridade. Eu era eu sem ter ainda vivido. E esse pensamento, ou aquele outro, vem a mim batendo bola.

Hoje, depois de tantos anos, penso ainda em medir limites. Não sei se tomar notas do processo dará outro sentido ao treino. Mas o tempo se desdobra quando ponho em palavras o que faço e parece durar no que escrevo.

18
O mini-golfe no arvoredo atrás do campo de futebol. O looping no pneu de bicicleta.

A corda com nós para a escalada, o trapézio e as argolas nas correntes da pracinha que a brisa movia aumentando a solidão de quem olhava.

O tee no bolso da calça secando no varal.

Tudo o que agora só existe na nossa infância.
20
Via de regra, o campestrino gosta mais de jogar que de pensar sobre golfe. Não pensar, aliás, é uma das maiores causas do bem-estar na cancha. Descansamos quando estamos focados apenas nas jogadas, imersos nas profundas pausas existentes entre uma tacada e outra. Mas a mim, além de jogar, interessa esses momentos de concentração na partida onde a realidade do campo nos rodeia tal qual é, sem ser filtrada pelas emoções, nem submetida à interpretação alguma. As paisagens da meditação em movimento.

É maior o interesse em aprender que em competir. Hoje, a disputa é um apêndice do golfe. No mais das vezes estou tão longe do jogo quanto o praticante de tai chi está de uma luta.

21
Nada do que digo é novidade. O que penso não passa de lugar-comum na vasta literatura do esporte. Mas viver cada uma destas notas e escrever enquanto as vivo, isto é meu.

23
Sem uma brisa, a bola engaiolada na erva-de-passarinho cai do galho como se derrubada pela rotação da Terra. Eucalipto do 8.

O vazio está presente sempre. Quem está em silêncio o percebe com clareza, como uma essência. E quem está em ação o percebe igual, irradiando arestas de sem sentido no que é feito.

24
As metas, as estatísticas, os programas de treinamento são avaros para o espírito do golfe.

Para avançar é preciso viver com o relógio a favor. Estar sem hora marcada.

E fazer com pouco. Quanto menor o número de gestos, mais espaço haverá para eles, mais nitidez corporal terá o movimento.

Quem tenta aproveitar ao máximo suas horas no campo de golfe tende a perder a paciência com os erros mais facilmente.

Ser generoso na cancha e na zona de prática. Tirar do próprio tempo para os outros. Flanar.

E limpar os tacos, raia por raia, sentado na grama conversando com o caddie, que desembarra as bolinhas da saca sentado na grama conversando também.

Repor os divots na cancha e reparar os quiques dos greens. Os teus, os dele, os do espírito santo.

25
São apenas cinco à direita do tee do 18. Não sobem iguais aos outros ciprestes do campo. Troncos retorcidos, trançados em cordas de madeira, como se crescessem obedecendo ao giro do céu sobre eles.

26
Não digo todos, só a metade. Se embocasse a metade dos putts que erro, elevaria o green ao meu nível de campo.

Bruma de pólen contra o poente na ladeira do último buraco. O ar denso de tão dourado. Draivamos entre os loopings dos morcegos do sótão perseguindo as libélulas, as formigas aladas e as moscas do capim.

Formigas aladas com asas de biplano, bruma de pólen com vagalumes.

E em riscos inaudíveis, os ecos dos morcegos.

30
Repetir a velocidade na corrida da bola de um green para o outro é tão importante quanto repetir o ritmo do swing.

Do domínio do tempo transcorrido entre os tiros também depende o ritmo do swing de golfe.

Entre as tacadas – o andar, o tempo em que o olhar dura em cada coisa, a respiração – deve premeditar o acerto.

31
Desde os primeiros passos o golfista deve sentir que já é bom o suficiente. Aprender sentindo-se bom o suficiente.

Fevereiro

2
Identificar o que, no swing, é imutável. O que anima o interior do movimento.

O que é nato, é fonte.

O corpo, depois de educado, não interfere na intenção do jogador. Ele está na tacada como a mão que escreve, deixando a atividade, todo o trabalho de bater na bola, vir de outro lugar.

4
A presença de certos jogadores ocupa todo o fairway. Outros, tão bons quanto, parecem não estar na cancha. Ser como estes.

O green brilha de tão rápido. Parece gerada pela bermuda a energia da bola acelerando na grama.

É a velocidade justa que conserva a linha contra a caída. Para a maioria, essa sensação de ter o green nas mãos depende do momento. Poucos a dominam.

5
Ilimitado, infinito, o que cabe no segundo e meio de um swing de golfe.

Embora exista um número contado de fundamentos, as técnicas e os métodos são incontáveis. Procurar é perder-se.

O corpo e o temperamento de cada um determina a parada na bola, a cadência do movimento, o plano do swing. Não o estilo copiado do swing de alguém.

 

 

7
O olhar no swing não pertence ao pensamento nem ao corpo. Pertence ao movimento.

Se fecho os olhos, o giro no escuro do corpo é amorfo. O giro deve ter silhueta no escuro.

Evitar a imagem do swing, procurar a forma da sensação.

Construir o swing de tal modo que o borrão vá delineando o corpo em movimento. Sua silhueta interna, cada vez mais nítida, amoldando-se ao movimento do corpo.

Presença incorpórea. A consciência do movimento no lugar da consciência do corpo.

Ou, dito de outra forma, sentir no swing a sombra da tacada.

A semana seguinte a um torneio em Montevidéu é ideal para observar no swing do golfista que retorna ao Campestre algum elemento novo incorporado durante a competição. Às vezes está na parada, outras na forma diferente de rolar o approach ou no toque do putt.

E as manhas que viajam de um campo ao outro. O guri voltou espanando a linha do putt com o boné. Depois estala os dedos para a corrida da bola no green. Na curta para rolar e na longa para parar. Maldiz em inglês. Muito úteis, as novidades.

9
Hoje tudo é em bloco: as mãos, os braços e o tronco movem-se juntos sobre uma base sólida. O corpo gira ao redor da coluna vertebral sem inclinação lateral alguma. O movimento é mecânico, atlético e exige mais elasticidade da musculatura.

Salvo um ou outro talento natural, o amador atual não possui a margem de improvisação daquele nosso swing de ajustes intuitivos, pois desde as primeiras lições de golfe aprendeu a inibir a atividade das suas articulações e obedeceu a maciça sensação dos tacos e bolas modernos.

Perdeu-se algo da navalha dos ferros. Mesmo nos tacos forjados atuais a sola engrossou e tornou-se mais pesada, o que acelera o efeito contrário na bola. Aqueles que sempre trabalharam as curvas dos voos encontram dificuldade, uma vez que a bola já sai do taco com mais backspin.

O resultado é maior alcance, linhas mais retas e menor poder de manobra. Canchas clássicas ficaram pequenas. O swing padronizou-se e, apesar de não existir golfista igual a outro, deixou quase todo mundo familiar.

Ontem, o jovem golfista que veio do torneio em Punta Carretas treinou com os antebraços ligados por elásticos. Ele tolera que o metal inanimado invada a única parte do seu corpo em contato com o taco no lugar de contagiar o grip com o calor das mãos, permitir que a vida desça pela vara até a face e, o mais importante, dela para a bola.

O certo é que, para ele, a sensação de bom contato é diferente. Que ele sinta o toque sem pulsos nem cotovelos, lá em cima, com os bíceps, ombros e dorsais.

12
Aquele sabiá chama. Já o outro só canta. E o mergulho da tesourinha atrás da vespa é diferente da que voa pelo mergulho.

Posso olhar sem o observador? Posso jogar sem o jogador?

A garça passa planando pelo verniz do driver.
Saio do stance.

De toureiro, o finish de toureiro.

15
É com relutância que dou o braço a torcer e decido levar meu stance solto, de marionete, para a postura das apostilas atuais.

Se não fosse o furto dos meus tacos eu nunca tentaria me aventurar. Eles não permitiriam.

17
Fazer da perda dos ferros uma vantagem. Com os novos Titleist será mais fácil “não lembrar” e recomeçar mantendo o meu swing apagado o suficiente para enxertar nele alguns elementos do golfe de hoje.
O tronco mais ereto aproxima o corpo da bola. O peso sai dos calcanhares para o laço dos cordões dos sapatos. A nova base é de cavaleiro. Como quem pisa na lama e sente o barro subir pelos lados do sapato.

Mais que o despertar do tônus, estranho a rigidez da nova parada na bola. A linha dos pés, a dos joelhos, a dos quadris e a dos ombros estão paralelas.

A bola ganha altura imediatamente.

Parece que o golfe está reduzido às leis da física. O desconforto é tanto que o swing não encontra espaço no corpo para existir.

O swing rejeita a simetria. Precisa de algo torto no esquadro, algo fora do encaixe que o destrave, um molejo por onde flua o movimento.

Duas transgressões. Atrasar o pé da frente quebrando a linha dos calcanhares e permitir que o olho direito permaneça dominante. Com ele na bola, a cabeça sai do eixo e o ombro esquerdo volta a estar levemente aberto. Essa diagonal liberta a postura da camisa-de-força e recoloca a posição de arranque.

19
A certeza que o bom swing é inevitável vem do conforto do stance. Conforto sacrificado. Se estou cômodo não estou reformando o swing como pretendo. Para bater bem na bola com a nova postura devo sentir-me estranho.

Hogan diz algo plausível neste momento de quebra de molde e de experimentação. Ele diz: “Lute contra a sua inclinação natural e faça simplesmente o contrário do que sinta que deve fazer; talvez assim consiga aproximar-se do movimento ideal.”
20
A impressão é de ter outro jogador, mais pesado, no corpo. Como se de repente a marionete estivesse coberta por massinha de modelar.

23
As jardas que o imprevisível lie do Campestre – de palha seca, de terra dura, de bermuda macia, de guias trançadas – dá ou tira da tacada.

As variantes para o contato impostas pelas variações do lie e pelas alturas de corte do fairway são decididas pelo corpo no stance. Sem pensar.

Afiar o bounce adiantando as mãos para atacar as bandeiras, só quando o campo permite.

É o modo como o golfista se sente no dia de jogo que determina se pode repetir o mesmo ritmo no maior número possível de tacadas.

E se existe algo a ser almejado é a repetição, não do movimento, mas da cadência do movimento.

28
Estamos tão dentro da quietude que o avião dessa nova rota aérea Buenos Aires-Porto Alegre passando com seu véu de noiva sobre a cancha nos parece uma intrusão.

 

 

Março


A umidade no ar, sem uma brisa no céu de verão, pesa mais sobre o voo da bola que vento contra.

A cada corte, o green (o mundo) segue nascendo.

Com o calcanhar esquerdo no chão desaparece a solta espiral da Velha Escola. No lugar de girar para trás com liberdade, o quadril resiste e gira um terço menos que os ombros. Há uma nova tensão dorsal. De torque, de saca-rolhas.

A musculatura deve estar completamente solta, especialmente a das costas. A dificuldade desta reeducação está em incorporar o tônus no swing e manter o corpo relaxado ao mesmo tempo.

2
Uma luva na axila direita para manter o cotovelo junto ao tronco e girar em bloco.

A colméia atingida pela bola despenca do pinheiro no range do 2. A nuvem de camotinhos passa rente ao campo. Birula deita no chão com a saca enfiada na cabeça. A salvo.

A bandeira ao sol e o green desenhado pelas sombras das árvores. Trevo, gota, trevo novamente. Zona de prática da ladeira.

– Tira a saca de perto da bandeira! Saca chama bola.

Nem sempre o melhor é quem mais treina.

5
O erro perdoado. Vento a favor, a bola é curta mas deixa um putt subindo ao buraco.

O mau pateador descobre o que talvez seja a maior entre as tantas injustiças com o swing de golfe: de nada adianta o tiro perfeito se o putt não o confirma.

7
Treinar sem metas. Para nada. Como escrevo.
A bola ainda no ar e o aroma da terra molhada que levanta do divot.

O bafo de pinho como um gás silvestre.

Aquele caddie de passo leve, meu contrário sempre. Tão bom que escolhe o golfista. Sabe que eu ouço se ele pensa alto. Solzinho com a bolsa nas costas.

– Sim, diz Pedro Silva, o da chispa adiantada.

Sente que o golfista lhe pertence. Nunca fala, só responde. Parece ausente. Ausente como quem guarda. Tem algo de galo de briga fora da rinha, o caddie.

O bom caddie, nos seus momentos de proteção, é um pouco pai-de-santo.

É para que o golfe não seja tão individual, o caddie puro de coração.

10
Para repelir os retornos e manter a memória corporal em branco por mais tempo, o grip vai da palma para os dedos e de entrelaçado para superposto.

Fora da cancha criar o hábito de refazer, parte por parte, o novo swing. Refazer na mente.

12
Sol das onze nas costas. A sombra do swing é melhor do que o espelho.

As folhas de eucalipto esfriam na medida que a sombra avança. E ao esfriar perfumam o mormaço. A zona de treino rescende a verão. Verão em Sant’Ana.
Pressão do grip constante, sem deixar os dedos brancos, nem estirar a corda dos músculos do antebraço.

Dizer que deve ser constante não é o mesmo que dizer que deva ser igual nas duas mãos. Aliviar a pressão do grip da mão direita faz com que o taco seja levado para trás pela mão esquerda, o que desacelera e encurta um pouco o backswing. Mas aumenta o controle.

A amplidão do arco é determinada pelo braço esquerdo. O arco é tão amplo quanto o braço esquerdo permitir.

21
As folhas caídas do eucalipto são pesadas e se espalham longe com a ventania.

Em vês e doble vês, as agulhas do pinheiro ficam onde caem, umas entre as outras. Lie intocável, de pega-varetas.

As folhas do plátano, a cada golpe de vento, movem-se juntas pelo campo como se move um cardume.

Há um espectro do giro, um novelo helicoidal em torno do swing, que lança a bola no ar. Ter consciência da voluta ao redor do corpo. Retê-la, controlá-la e projetá-la na tacada.

O swing é aéreo até que o contato o materializa. E o corpo do golfista, ao receber também o impacto que projeta a bola no espaço, se recarrega a cada tacada bem feita.

O swing, como o círculo, atrai a energia de polos opostos para concentrá-la no seu interior.

Ou, em outros termos, se o giro é espiritual o impacto é a entrada do swing no corpo.

 

[…]

 

As quatro estações do Diário estão em

 

tan editorial

Idealizada por Thomaz Albornoz Neves, a chancela tan ed. reúne títulos  de autores cisplatinos e afins. São obras de fotografia, arte, poesia, ensaio e relato escritas em português e espanhol (com alguma pitada de portunhol). O empreendimento é solitário, sazonal e sem fins lucrativos. Os livros têm a mesma identidade gráfica e são, na sua maioria, ilustrados com desenhos do editor. A tiragem varia entre 75 e 300 exemplares numerados.