Um iceberg centenário
Para entender os resultados alcançados por Sandro Gonçalves (segundo no ranking amador brasileiro em 2015) Herik Machado (recentemente Campeão Amador Argentino e Brasileiro, vencedor da Faldo Series) e Andrey Xavier (atual líder do ranking amador e Campeão do Orange Ball), todos oriundos do projeto social promovido pela Escola de Golfe Boa-bola do Clube Campestre de Livramento, precisamos voltar no tempo, ainda que brevemente. Porque, neste caso, tempo é um fator crucial se considerarmos que esses meninos são a ponta de um iceberg centenário.
O outro fator é o acaso. Não fosse pela Revolução de 1904 no Uruguai, o basco Pedro Irigoyen não teria emigrado de Montevidéu à fronteira e escolhido para estabelecer sua charqueada um vale de contornos suaves, salpicado de olhos d’água e protegido por cerros chatos de arenito na curva de um arroio claro e corrente. Nem os americanos da Armour Co. teriam trazido José Maria, o pai de Mario Gonzales, para construir seu campo de golfe justo ali naquele vale quando incorporaram o saladeiro de Irigoyen ao frigorífico.
Se o leitor está se perguntando o que aquilo teria a ver com isto, a resposta é: tudo. Primeiro porque o elemento essencial formador desses atletas é a cancha do Campestre. Esse circuito desgastante tanto para o físico quanto para a mente demanda desde o início paciência, perseverança e raça para ser enfrentado. Não à toa seu recorde em 18 buracos é de apenas -6 e se mantém por quase 40 anos.
Os declives, aclives e bandeiras cegas, suas bancas molhadas, roughs de flexilhas, barrancas erodidas, mais a bermuda agreste que varia de green para green, os tees desnivelados e fairways ondulados exigem que as articulações do golfista mirim se acendam cedo dotando-o de um repertório riquíssimo e complexo, cheio de microgestos que permitem compensar o terreno acidentado e a pobreza da manutenção desse secular campo de golfe.
Ao contrário de um swing armado e robotizado pelos grandes músculos, eles são flexíveis. Suas falanges, pulsos, joelhos e quadris seguem agindo mesmo quando submetidos a um movimento mais mecanizado, conservador e repetitivo como os aprendidos atualmente nas clínicas de alta performance. Os meninos são capazes de incorporar a solidez do estilo moderno sem, contudo, perder a criatividade e o improviso do golfe clássico da primeira metade do século XX. Aquele jogado pelo mais célebre filho dessas raias: Mario Gonzales.
Talvez por isso chamamos nosso golfe de Golfe Raiz.
E, segundo, porque o bairro criado pelos empregados do frigorífico respira desde 1915 o ar dos fairways. Seja como caddies, green keepers ou jogadores noturnos, seja como praticantes do golfe baldio, na praça ou no circuito mantido por eles a boca de ovelha atrás da Velha Charqueada e batizado de Campinho, a realidade é que o swing não é um movimento estranho para as crianças pequenas do lugar. Gerações cresceram nas ruas de terra vendo a bola voar de uma esquina à outra por cima dos telhados.
Meu ponto é que essa intimidade com o swing criou o maior celeiro de golfe popular do Brasil. Em 1999, a Escola Boa-bola canalizou sua matéria prima e, mais recentemente, o Alta Performance do Belém Novo Golf Club passou a lapidar os melhores. Para se ter uma ideia, dos 25 golfistas que disputam este ano o mirrado tour gaúcho de profissionais 14 sairam do Campestre. Diante dos resultados, a FRGG e a CBGolfe (apoiados pelo R&A) passaram a investir, ainda que timidamente, no projeto. O gargalo porém, está onde sempre esteve.
A questão que se coloca é evidente. A popularização do golfe através de projetos sociais como o de Livramento depende da existência de um circuito profissional nacional que os absorva. Na falta da integração universitária do modelo americano e diante de um elitista circuito amador que há décadas se esgota em si mesmo este Golfe Raiz esbarra na profissionalização. Termina nela, quero dizer.
E sobre o olho de grilo… Bom, diz respeito à mágica do lugar quando a bola voa, quanto menos se fala mais brilha.
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