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Por Bruno Tolentino

Sobre Sol sem imagem

Se Valéry ses’t trompé – como quer Bonnefoy desde a frase de abertura do seu famoso ensaio sobre o Maitre[1] – certamente não se equivocou por omissão ou escassez. Duas décadas de silêncio após a sua insône nuit de Gênes iriam dar assim mesmo na Jeune Parque, todo o contrário do laconismo eloqüente. E é mesmo provável, como quer o autor de L’improbable, que só no Cimitière marin, o grande homem se tenha redimido de tanto silêncio profilático. Não, a exigüidade de meios nada tem a ver com a indecisão ante o ato criativo, nem a celebrada vertigem ante a fina, chata, e plana page blanche assegura a justeza, a exatidão expressiva. No exercício do canto há sempre apenas o mesmo abismo a transpor ou não, sempre o risco de despencar à toa. Não há laconismo preventivo que cancele a lei da gravidade, implacável para com o poetâmano: despenca-se de mil como de uma dezena de palavras maldispostas. Observe-se no poema ORÁCULO como nosso poeta evita esta última hipótese:

Recorda e terás esquecido
nada ocorre por acaso
não há destino escrito

Só o oráculo fala assim, por contrações e elipses. Ou o poeta. Que também poderia ter-se arriscado a despencar se tivesse preferido dizer o mesmo ao gosto do nosso encruado beletrismo, por exemplo assim:

 

Tudo quanto recordas é uma escolha;
que escreves teu destino em cada folha
que separas do ramo inteiro, e agora
chamas de acaso o que jogaste fora[2].

 

Convenhamos que nada ficou dito deste modo que já não estivesse na dúzia de palavras que multiplicamos por dois com 10% de quebra… Também é de convir em que não há mal algum em musicar “excessivamente” um texto enxuto, desde que o essencial, a força das imagens e conceitos, não se afogue em ornamentos marmóreos. Valéry, para voltarmos ao grande trompé deste século, soube fazer uso da arte de ornar-para-instruir com a exemplaridade do escultor de capitéis coríntios. Mas aqui, no texto linear de TAN, temos apenas colunas. O templo da pitonisa délfica é aqui transposto com um mínimo de palavras e ritmos, como ela o fazia para desespero dos perguntadores ansiosos. Recorde o poema de Cavafy sobre o equívoco de Nero… E não cito os dois, o poeta alexandrino e o piropoetâmano romano ao acaso; faço-o para ilustrar dois universos opostos e situar a arte deste livro. A arte do fragmento é mais complexa do que à primeira vista sugere. Nela a temporalidade e a incompletude convergem.

Senão vejamos. Nada sabemos dos versos do imperador, mas os do grego anglófilo quase sempre sugerem um corte, tácito e tático, no fluxo da História. Há um antes e um após suposto em quase todos aqueles desvãos pelos quais se percebe poéticamente a unidade alusiva de um todo perdido. Mas sabemos que Cavafy escrevia a partir de ruínas, numa civilização entulhada delas. A incompletude era, portanto, para ele mais que um referencial, uma herança. Seu Mediterrâneo, às antípodas do de Montale e Valéry, é elegíaco, nostálgico, portanto mais próximo do relâmpago, do flash, da memória visual, que do universo linear do conceito. O mundo revogado que Palamás tentou artificialmente recompor pela grandiosidade retórica, nele aceita sua fragmentação irrevogável. Seu mosaico é tão minucioso quanto seu painel é improvável. Na incompletude, ele, o C. P. Cavafy, importador grego do demótico liverpuliano[3], vai buscar um aliado do olhar implacável. Morre em 1933, ano da prova do segundo Teorema da incompletude de Kurt Gödel, do Anchlus, do princípio do fim de uma era gloriosa e moribunda. Morre entre as ruínas de um amanhã que nunca lhe interessara. Sua rapsódia em capítulos desconexos não promete mais do que reconhece, e o que ele conheceu foi o histriônico ocaso alexandrino, a imitação de um amanhecer em que ninguém acredita e a que ninguém renuncia lá junto ao delta do Nilo…

Mas, muito bem, se o gênio helênico depois de três milênios se coroa melhor de folhas mortas, que tem a ver o minuano com isso? Vá lá que o fragmento ostensivo e implícito faça a grandeza de Cavafy e a pujança do Mithistórema e do Tordo de Seferis; mas TAN é um sadio e robusto vate gaúcho, porquê tanta hesitação em unir e engordar as partes de um discurso que em língua portuguesa, entre nós ao menos, não descende de irrecuperáveis grandezas revogadas pela História, que afinal mal tivemos e mal recordamos? Direi eu que o que une esse jovem timorato e a tradição crepuscular levantina é aquele drama eminentemente centro-europeu, a acima citada “incompletude” de que Musil, Berg, Webern, Kafka e Trakl são sintomas e de que Gödel foi o impiedoso, matemático elucidador. E lúcida a dor dói mais… Não quero dizer que aqui, nas latitudes ao sul dos tristes trópicos, uma arte do fragmento seja a melhor, nem a mais lúcida resposta ao male di vivere montaleano; digo apenas que onde o discurso poético, perfeitamente possível como fluxo, escolhe fragmentar-se, temos ou bem uma artificialidade de poseur ou uma necessidade vital que não se pode resignar a nenhuma outra via expressiva. Inclino-me por esta última hipótese.

Eqüidistante do letrismo e beletrismo que embaçam as lentes de nossa poesia estas três últimas décadas, a arte de TAN é a do cinzel sem mármore a vitimizar. Ele não desbasta um bloco, menos ainda propõe-se compor um de finas camadas preciosamente escolhidas. O que esta arte do laconismo dolorido quer fazer e, não raro o consegue, é interrogar um espaço povoado de perigos, sem esquivá-los nem substituí-los. É uma arte, aliás, cujos modelos formais foram ao início nitidamente mediterrâneos, e mesmo levantinos, como o ilustra o poema O ESTRANGEIRO, dos mais antigos do livro, para mim um eco indisfarçavel dos argonautas de Séferis. Teria sido, senão fácil, perfeitamente possível ao jovem poeta de então compor nosso primeiro Diário de bordo, a julgar por essa peça magistral de re-ambientação lírica de uma a “outra” tradição. Se não fez foi porque em seu PAMPA, onde o imenso se reproduz ininterrupto,

O verdor acima do campo
As folhas a um fio dos galhos

O peso do pássaro voando
Na sombra do pássaro voando

No silêncio
o pedaço de silêncio
em tempo algum quebrado

No ar
o pouco de ar jamais respirado

 

essas amplidões tão telúricas quanto atávicas o recordavam sem cessar que a imitação do mar não é o Thalassa Thalassa que Seferis soube ecoar tão bem porque o tinha a correr nas veias. Sabedor de que uma coisa é assimilar uma tradição por força de afinidades eletivas, outra é tentar enxertar-se nela sem outro efeito que se pavonear em vão. TAN, poeta culto, é não obstante um homem prudente, sem medo dos seus limites. E foi da arte de limitar, não de imitar, que compôs por mais de uma década o livro que, luminoso como os limões da ode ou o volto giallino da elegia de Montale, se retrai ainda assim ao mínimo do essencial, Vira / girassol / o olho no olho do sol.A este ponto corrijo a tempo uma injustiça ou, antes, confesso o despistamento a que venho recorrendo para adiar e colocar melhor o mais óbvio paralelo estilístico entre este livro e a grande tradição mediterrânea moderna. Refiro-me, é claro, ao silêncio que mantive até aqui no que respeita ao paradigma ungarettiano desta obra em curso de eclosão. Há mais que uma coincidência de idades entre nosso rapaz e o jovem autor de Il porto sepolto, absorvido no Allegria di naufragi de 1919. Os 31 anos do italiano e os 32 do brasileiro de Sant’Ana do Livramento balizam apenas um dos tres lados da pirâmide de convergências, formais e de sentido, entre os dois. A uma segunda tangente temos aquela illumination fabuleuse, que no afro-europeu circunda o inefável,

 

Vi arriva il poeta
e poi torna alla luce com i suoi canti
e li disperde

Di questa poesia
mi resta
quel nulla
d’inesauribile segreto

enquanto o nosso afro-americano o coisifica:

És
ouro
onde não há luz

Dormes no cristal escuro
um fio de relva divide a transparência

São evidentes a um tempo as afinidades e as diferenças; menos óbvio é o contraste entre os métodos de percepção e expressão: diretíssimo do bardo mediterrãneo, este o entrega a um reflexão beirando ao abstrato. Inesperado no segundo exemplo, esse método de perceber, captar o real num corpo feminino, não o revela senão através das metáforas contíguas, ou correlatas ( ouro / luz; escuro / cristal; fio de relva – navalha na carne do inefável, aqui traduzido em transparência), tudo modestamente concreto, sem divagações ou mesmo reflexão.
Quanto à terceira tangente, até mesmo em certas convergências temáticas percebe-se a variante da abordagem e resolução, veja-se o fecho do famoso “Girovago” do mestre do início do século:

Godere um solo
minuto di vita
iniziale

Cerco um paese
inocente

E leia-se, na mesma clave, os dois NÔMADES. No primeiro a imensidão estelar do filho do deserto torna-se aqui simplesmente um: Será noite. E a sintaxe escorreita do grande nômade de Il deserto e dopo é tornada elíptica à hora da reflexão, como se a quisesse encurtar: E por não viver / à imagem de si mesmo / a arte de esquecer-se. Similarmente a irretocável magestade da célebre quadra ungarettiana

Si percorre il deserto com residui
di qualche immagine di prima in mente.
Della Terra Promessa
Nient’altro um vivo sa.

vai ecoar, de resto sem desígnios ou derivações na límpida e concretíssima estrofe de abertura de NÔMADES II:

A estrada some a cada passo
Nós tocamos a terra sem nome
Se reencontrarmos quem abandonamos
só a pele recordará

Sempre no Mestre occulto o vago perfume do ser, a melodiosa silhueta contra a noite dos sentidos; paralelamente sempre no discipulo inconsapevole o peso vigoroso da presença quase carnalizada da memória, o custo e o fardo do real tão obliquamente meditado quanto é ainda compatível com a arte lírica da moderna. Não se trata, pois, de uma influência, mas de uma afinidade, até na exiguidade dos meios, na economia do verso, relutante em estrofisar-se num caso e noutro. Um parentesco portanto, laços de família impossíveis de atar ou explicar. Se TAN ainda adolescente tivesse lido Ungaretti como lia Éluard e os surrealistas em bloc, teríamos a rima, não a solução do feliz paradoxo; tendo sido as coisas como foram, Seferis, Montale e Cavafy não fizeram mais que emoldurar uma sensibilidade cujo caminho, como a famosa rue al-Geish em Alexandria, correria paralelo ao oceano, sim, mas iria dar não no Ras al-tin, mas nas velhas muralhas de Luca, solidificadas.

Restaria, não fosse descrer do leitor provável deste livro, chamar sua atenção para a constelação do livro inteiro em torno, ou em direção aos sessenta e poucos versos do poema final, O SONO. Trata-se aqui, com efeito, de um só texto, na realidade o desdobramento, verso a verso, de um nu à la Tal-Coat, como entrevisto meio as brumas delicadas do erotismo du coeur. Rica é a tradição da nossa lírica amorosa, de conotação erótica, mas a “preocupação carnal” em que Cecília Meireles via um fenômeno de adolescência cultural num país ainda jovem demais é neste caso atenuada, senão sublimada, por uma arte de rara acuidade metafísica. Ao cubismo ironizado por Cocteau (Que voulez-vous que j’en fasse / la jeune femme est de face / alors qu’elle est de profil...), TAN aplica a dimensão onírica como um corretivo à excessiva temporalização, como a mera especialização do corpo pelo desejo: Para que o infinito / possua centro / tua nudez sonha a si mesma. E à tirania do olhar-desejo (Em ti não perece / sequer amadurece / a vida ), opõe como que uma quarta dimensão, a do espírito, essa dúvida quanto à confiabilidade da sentença dos sentidos: O que se vê é o eco do que não é visto. O poema, em seus 16 fragmentos, cerca uma unidade para além do meramente sensorial, como da fixação no conceito: soma total da operação de intuir o ser, essa breve suite (no sentido musical de danças encadeadas) é também um desenho picassiano em seu esplendor linear, o “traço” cercando de vazios uma plenitude que implode a cada curvatura, a cada “dissonância” anunciando um novo “movimento”. Do súbito “cubismo” restaurado de o luar de tua nuca sonha ser face, passa-se sem deslizes ao esplêndido

Somes
no
silêncio

És o que te sonha

O poema oscila entreo visual e o interrogativo até o fecho desta pequena jóia, à maneira de um grand finale ungarettiano (Fa dolce e forse qui vicino passi…):

É dia.

No centro
da luz
raias

A luz é tua sombra.

 

Lamento a entrada de poeta tão sensível quanto pessoal no ringue surrado de nossas letras fin de siècle. Entre a balbúrdia gárrula de levas de poetâmanos pugnazes e a hipocrisia silenciosa da krititica paroquial de plantão, é pouco provável que perceba, 1% sequer de tudo o que este livro exíguo de meios e denso de sentidos tem a oferecer ao leitor atento. Gostei de lê-lo, mas gosto de gente e de poesia, mais ainda da combinação de ambos. Não é notoriamente o caso de meus colegas de ofício, nem dos fantasmas doutorados cuja função, caso existisse, seria a de dar eco às autênticas vozes poéticas. Prevejo – e congratulo de antemão seu autor pela façanha – um incômodo silêncio em torno destas 900 palavras em versos lapidares[4]. Se ao menos alguém atirasse a primeira pedra…

17 de março de 1996

[1] L’improbable, Mercure de France 1959.
[2] Mea Culpa.
[3] W. H. Auden fez-me mais de uma vez esta observação, que dizia ter ouvido de E. M. Foster.
[4] Tamanho não é documento. Em The hollow man, seu quarto livro de poesia, T.S. Eliot reuniu pouco mais de 400 palavras.

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