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Com João Antônio. Uma entrevista.

Como você situaria os seu livro Sol sem Imagem em relação aos seus trabalhos anteriores?

Sol sem Imagem resulta de duas reuniões anteriores, Renée, de 1987, e Poemas, de 1990. Poemas era já uma releitura de Renée acrescido de algumas novas composições que eu segui trabalhando, mesmo depois de publicá-las. Tais releituras, e as versões que delas se originaram, apontam para uma predisposição: dizer com o menos – o menos entendido por exato. Houve também uma tendência à anulação da primeira pessoa, não por necessidade estilística, mas por uma espécie de, digamos, pudor que conduzia cada vez mais o verso para o silêncio.

Com isso você quer dizer que tem escrito um único e mesmo livro?
Tenho a impressão de que tudo que escrevo permanece em processo. Renée foi o livro da descoberta do amor. A vida continuou e eu segui reescrevendo aqueles poemas até não reconhecê-los mais. O que se advertia em Renée está perdido – a unidade do primeiro amor, a ausência da dúvida, o mundo todo em si da adolescência. É possível que um dia o livro todo, ou o que restou dele, um estado, um ambiente específico, dê origem a um poema. Já Poemas é um esboço de Sol sem Imagem, que é um livro apenas aparentemente pequeno. Há vários livros neste livro. Na realidade, Sol sem Imagem é meu único trabalho porque contém tudo o que já fiz.

Você disse ter sentido uma espécie de pudor em relação a escrever em primeira pessoa…
Eu passei por uma transição. Me dei conta que não me sentia nem um pouco à vontade escrevendo poemas diretamente confessionais. Na verdade, não reconheço nem a figura do poeta “antena da raça”, nem a do romântico hipersensível, do eleito que dá vazão aos sentimentos em longos versos schmitianos. Eu prefiro o poema independente, livre das circunstâncias do autor, como uma escultura. Procuro fazer do poema um aretefato verbal. Eu desconfio do espontâneo e não gosto do sentimental.

E de que forma o uso do fragmento se insere nesse processo?
O fragmento, como eu o vejo, é um todo em si. Ele não é uma parte que pressupõe a reconstrução imaginária da sua totalidade. Ele não se ressente do que lhe falta, por que não lhe falta nada. Um fragmento não é algo inacabado simplesmente, é algo completo inacabado. Há nele uma descontinuidade rítmica, espaços vazios que se associam naturalmente ao silêncio. Nesse silêncio até um pronome se destaca.

A apresentação de seus poemas feita pela Casa da Poesia Fernando Pessoa por ocasião da leitura realizada em lisboa estabelece um paralelo entre seus trabalhos e o universo pictórico, como se seus versos fossem traços e os poemas telas.

Falava-se ali de como a figura, os nus no caso, têm em alguns poemas um tratamento abstrato. Como se a figura se tornasse uma abstração sem deixar de ser figura. A mancha que transborda o corpo. Eu gosto do paralelo. Há alguns nus de Nicolas de Stael que são bem isso. Ocorre que os poemas tidos por abstratos são, na verdade, retratos das sensações e não dos amantes.

Como você se vê no panorama atual da poesia brasileira?
Não escrevo nada pensando no percurso literário. Não me coloco essa questão. Ao escrever estamos ligados a diversas tradições e não somente à brasileira. É claro que o que faço se insere em uma determinada perspectiva da nossa poesia contemporânea. Mas eu não defendo posições estéticas a partir da minha escolha estética. Porque ela não é mais que isso – uma escolha. O catequismo e a polêmica não me atraem. Ou, em outros termos, eu acredito que posições antagônicas não são excludentes, mas complementares. Procuro evitar, embora não seja a tônica, a herança do sectarismo literário, seu espólio de rivalidade caduca. O que mostra o nosso panorama atual é a convivência de diversas dicções. Na realidade, eu prefiro mil vezes o verso bem feito ao argumento vencedor. Um verso bem feito, seja qual for a sua forma, é irrefutável.

Podemos falar de suas leituras e influências?
Toda leitura atenta inflluencia, seja por adoção, seja por rejeição. Entre os modernos, tenho afinidade com segmentos do trabalho de poetas diferentes entre si, mas com vínculos evidentes. De Ponge e Cabral a Valéry e Guillén, de Éluard e Murilo a Celan e Ungaretti. Ou, hoje, Orides fontela e Creeley. A leitura de um certo Brodsky remete a Cavafy que remete a Seferis, etc. Agora, são raros os que, neste século, reuniram os elementos poéticos essenciais na justa medida como Montale. Ao menos essa é a minha opinião atual.

E que elementos seriam esses?
Rigor formal, originalidade, universalidade temática, sensibilidade sem sentimentalismos, o que todos têm um pouco demais ou de menos e que muito poucos têm na medida certa. Auden, Mandelstam (intuo), certamente Bandeira… Mas em Montale o verso está tão no limite da frase, que revela o que distingue o poema da prosa.

Quanto tempo do seu dia você dedica à poesia? Você escreve diariamente?
Por mais que alguem se dedique exclusivamente a ler e a escrever, deve ganhar a vida de alguma forma. E depois ninguém consegue, ao menos eu não consigo, pensar em poesia o tempo inteiro. Sempre achei uma boutade de Yeats aquela história de The intelect of man is forced to choose / Perfection of the life, or the work … Esse assunto para mim está muito claro, se escrever não fosse uma experiência intensa o suficiente para dar mais vida à minha vida eu não escreveria.

Mas qual é o processo que o leva a escrever um poema?
O poema nasce do acaso. Sua origem é aleatória. A melhor forma que eu conheço para “ induzir” ao acaso, sendo isto possível – e eu receio que seja – é a disciplina. Por disciplina entendo estar predisposto a escrever, e não só escrever. É dessa perspectiva que para mim vida e arte, o life and work dos termos de Yeats se confundem. São uma única experiência cotidiana. Para escrever posso passar muito tempo sem escrever. Minha atividade consiste em perscrutar o poema, estar atento aos seus indícios até que a palavra tome posse e o transforme. Há um olhar perplexo, um olhar que precede a reflexão no foco do meu poema, que abarca a sensação do mundo e não só a sua imagem. Ocorre que raramente sou bem sucedido, o que equivale a dizer que raramente sou um poeta.

O que o levou a publicar um livro bilingue?
Através da revista Poesia Sempre, idealizada pelo poeta Affonso Romano de Sant´Anna, fui convidado para participar de festivais de poesia na Colombia e na Argentina. Fiz leituras bilingues. No início eu escrevia as versões, depois a poeta peruana Blanca Varela e especialmente o poeta argentino Rodolfo Alonso traduziram meus poemas. Rodolfo e eu traduzimos alguns juntos, tomando café num lugar calmo, antes dos recitais, em Rosário. O livro bilingue é uma convergência de fatores. Primeiro que eu já nasci bilingue, sou da fronteira do Uruguay. Depois há também a própria Poesia Sempre, que promove contatos através da sua sessão permanente de poesia hispano-americana contemporânea. E por fim há uma editora arrojada como a Topbooks que antevê nesse intercâmbio possibilidades concretas de integração.

Você participou de vários colóquios e esteve em recitais. De que maneira o público reage à leitura de uma poesia dita lacônica como a sua?

Li poemas pelo interior de Minas, Espírito Santo, Rio, Rio Grande do Sul, nos referidos festivais na América do Sul e também em Portugal. Nunca li na Itália, apesar de ter morado tres anos lá. Minha impressão quando leio ou assisto uma leitura é a mesma. O poeta lendo seus poemas é um personagem patético, desamparado. É uma curiosidade para o público. Quanto ao laconismo… um poema se sustenta se tiver ritmo. O que vale a pena nesses encontros são justamente os encontros. Fiz alguns amigos. Agora, ler em público pela primeira vez é um rito de passagem.

O que lhe levou a escrever sobre Dante Milano?
Foi um trabalho acadêmico. Procurei investigar os mecanismos que legitimam a figura pública do poeta. Milano é um poeta de extremo talento. Por que rezão não teve a projeção que merecia? Até que ponto seu auto-exílio determinou o seu reconhecimento? Ao mesmo tempo, Milano se considerava um poeta póstumo. Seu diálogo, ele dizia, era com a tradição. Que tipo de imagem de si e da poesia leva um homem a manter essa posição? O que está em questão é a relação do poeta com seu tempo e o seu espaço de atuação. Fiz um levantamento com a maior abrangência possível. Entrevistas, depoimentos de época, fortuna crítica formam um mosaico onde não só a figura de Dante Milano se revela contraditória e multifacetada, mas também a de Bandeira, Drummond, Schmidt, e o próprio sistema literário modernista ganham nesse garimpo novas possibilidades de leitura. Há fatores extra-literários que determinam o tipo de reconhecimento que o escritor terá. Dante Milano me forneceu, por falta, por ausência, a oportunidade de apontar as estratégias de construção da imagem pública. Seu retraimento as torna mais evidentes. Escrever sobre a política literária, sobre a formação de opinião, foi a forma que encontrei para refletir parte das experiências adquiridas aqui no Rio de Janeiro nos últimos cinco anos. O que, no final das contas, não me livrou da impressão de estar falando de mim como de um personagem.

 

Rio de Janeiro. 1996

 

Sol sem imagem está em

tan editorial

Idealizada por Thomaz Albornoz Neves, a chancela tan ed. reúne títulos  de autores cisplatinos e afins. São obras de fotografia, arte, poesia, ensaio e relato escritas em português e espanhol (com alguma pitada de portunhol). O empreendimento é solitário, sazonal e sem fins lucrativos. Os livros têm a mesma identidade gráfica e são, na sua maioria, ilustrados com desenhos do editor. A tiragem varia entre 75 e 300 exemplares numerados.