Como você situaria os seu livro Sol sem Imagem em relação aos seus trabalhos anteriores?
Sol sem Imagem resulta de duas reuniões anteriores, Renée, de 1987, e Poemas, de 1990. Poemas era já uma releitura de Renée acrescido de algumas novas composições que eu segui trabalhando, mesmo depois de publicá-las. Tais releituras, e as versões que delas se originaram, apontam para uma predisposição: dizer com o menos – o menos entendido por exato. Houve também uma tendência à anulação da primeira pessoa, não por necessidade estilística, mas por uma espécie de, digamos, pudor que conduzia cada vez mais o verso para o silêncio.
Com isso você quer dizer que tem escrito um único e mesmo livro?
Tenho a impressão de que tudo que escrevo permanece em processo. Renée foi o livro da descoberta do amor. A vida continuou e eu segui reescrevendo aqueles poemas até não reconhecê-los mais. O que se advertia em Renée está perdido – a unidade do primeiro amor, a ausência da dúvida, o mundo todo em si da adolescência. É possível que um dia o livro todo, ou o que restou dele, um estado, um ambiente específico, dê origem a um poema. Já Poemas é um esboço de Sol sem Imagem, que é um livro apenas aparentemente pequeno. Há vários livros neste livro. Na realidade, Sol sem Imagem é meu único trabalho porque contém tudo o que já fiz.
Você disse ter sentido uma espécie de pudor em relação a escrever em primeira pessoa…
Eu passei por uma transição. Me dei conta que não me sentia nem um pouco à vontade escrevendo poemas diretamente confessionais. Na verdade, não reconheço nem a figura do poeta “antena da raça”, nem a do romântico hipersensível, do eleito que dá vazão aos sentimentos em longos versos schmitianos. Eu prefiro o poema independente, livre das circunstâncias do autor, como uma escultura. Procuro fazer do poema um aretefato verbal. Eu desconfio do espontâneo e não gosto do sentimental.
E de que forma o uso do fragmento se insere nesse processo?
O fragmento, como eu o vejo, é um todo em si. Ele não é uma parte que pressupõe a reconstrução imaginária da sua totalidade. Ele não se ressente do que lhe falta, por que não lhe falta nada. Um fragmento não é algo inacabado simplesmente, é algo completo inacabado. Há nele uma descontinuidade rítmica, espaços vazios que se associam naturalmente ao silêncio. Nesse silêncio até um pronome se destaca.
A apresentação de seus poemas feita pela Casa da Poesia Fernando Pessoa por ocasião da leitura realizada em lisboa estabelece um paralelo entre seus trabalhos e o universo pictórico, como se seus versos fossem traços e os poemas telas.
Falava-se ali de como a figura, os nus no caso, têm em alguns poemas um tratamento abstrato. Como se a figura se tornasse uma abstração sem deixar de ser figura. A mancha que transborda o corpo. Eu gosto do paralelo. Há alguns nus de Nicolas de Stael que são bem isso. Ocorre que os poemas tidos por abstratos são, na verdade, retratos das sensações e não dos amantes.
Como você se vê no panorama atual da poesia brasileira?
Não escrevo nada pensando no percurso literário. Não me coloco essa questão. Ao escrever estamos ligados a diversas tradições e não somente à brasileira. É claro que o que faço se insere em uma determinada perspectiva da nossa poesia contemporânea. Mas eu não defendo posições estéticas a partir da minha escolha estética. Porque ela não é mais que isso – uma escolha. O catequismo e a polêmica não me atraem. Ou, em outros termos, eu acredito que posições antagônicas não são excludentes, mas complementares. Procuro evitar, embora não seja a tônica, a herança do sectarismo literário, seu espólio de rivalidade caduca. O que mostra o nosso panorama atual é a convivência de diversas dicções. Na realidade, eu prefiro mil vezes o verso bem feito ao argumento vencedor. Um verso bem feito, seja qual for a sua forma, é irrefutável.
Podemos falar de suas leituras e influências?
Toda leitura atenta inflluencia, seja por adoção, seja por rejeição. Entre os modernos, tenho afinidade com segmentos do trabalho de poetas diferentes entre si, mas com vínculos evidentes. De Ponge e Cabral a Valéry e Guillén, de Éluard e Murilo a Celan e Ungaretti. Ou, hoje, Orides fontela e Creeley. A leitura de um certo Brodsky remete a Cavafy que remete a Seferis, etc. Agora, são raros os que, neste século, reuniram os elementos poéticos essenciais na justa medida como Montale. Ao menos essa é a minha opinião atual.
E que elementos seriam esses?
Rigor formal, originalidade, universalidade temática, sensibilidade sem sentimentalismos, o que todos têm um pouco demais ou de menos e que muito poucos têm na medida certa. Auden, Mandelstam (intuo), certamente Bandeira… Mas em Montale o verso está tão no limite da frase, que revela o que distingue o poema da prosa.
Quanto tempo do seu dia você dedica à poesia? Você escreve diariamente?
Por mais que alguem se dedique exclusivamente a ler e a escrever, deve ganhar a vida de alguma forma. E depois ninguém consegue, ao menos eu não consigo, pensar em poesia o tempo inteiro. Sempre achei uma boutade de Yeats aquela história de The intelect of man is forced to choose / Perfection of the life, or the work … Esse assunto para mim está muito claro, se escrever não fosse uma experiência intensa o suficiente para dar mais vida à minha vida eu não escreveria.
Mas qual é o processo que o leva a escrever um poema?
O poema nasce do acaso. Sua origem é aleatória. A melhor forma que eu conheço para “ induzir” ao acaso, sendo isto possível – e eu receio que seja – é a disciplina. Por disciplina entendo estar predisposto a escrever, e não só escrever. É dessa perspectiva que para mim vida e arte, o life and work dos termos de Yeats se confundem. São uma única experiência cotidiana. Para escrever posso passar muito tempo sem escrever. Minha atividade consiste em perscrutar o poema, estar atento aos seus indícios até que a palavra tome posse e o transforme. Há um olhar perplexo, um olhar que precede a reflexão no foco do meu poema, que abarca a sensação do mundo e não só a sua imagem. Ocorre que raramente sou bem sucedido, o que equivale a dizer que raramente sou um poeta.
O que o levou a publicar um livro bilingue?
Através da revista Poesia Sempre, idealizada pelo poeta Affonso Romano de Sant´Anna, fui convidado para participar de festivais de poesia na Colombia e na Argentina. Fiz leituras bilingues. No início eu escrevia as versões, depois a poeta peruana Blanca Varela e especialmente o poeta argentino Rodolfo Alonso traduziram meus poemas. Rodolfo e eu traduzimos alguns juntos, tomando café num lugar calmo, antes dos recitais, em Rosário. O livro bilingue é uma convergência de fatores. Primeiro que eu já nasci bilingue, sou da fronteira do Uruguay. Depois há também a própria Poesia Sempre, que promove contatos através da sua sessão permanente de poesia hispano-americana contemporânea. E por fim há uma editora arrojada como a Topbooks que antevê nesse intercâmbio possibilidades concretas de integração.
Você participou de vários colóquios e esteve em recitais. De que maneira o público reage à leitura de uma poesia dita lacônica como a sua?
Li poemas pelo interior de Minas, Espírito Santo, Rio, Rio Grande do Sul, nos referidos festivais na América do Sul e também em Portugal. Nunca li na Itália, apesar de ter morado tres anos lá. Minha impressão quando leio ou assisto uma leitura é a mesma. O poeta lendo seus poemas é um personagem patético, desamparado. É uma curiosidade para o público. Quanto ao laconismo… um poema se sustenta se tiver ritmo. O que vale a pena nesses encontros são justamente os encontros. Fiz alguns amigos. Agora, ler em público pela primeira vez é um rito de passagem.
O que lhe levou a escrever sobre Dante Milano?
Foi um trabalho acadêmico. Procurei investigar os mecanismos que legitimam a figura pública do poeta. Milano é um poeta de extremo talento. Por que rezão não teve a projeção que merecia? Até que ponto seu auto-exílio determinou o seu reconhecimento? Ao mesmo tempo, Milano se considerava um poeta póstumo. Seu diálogo, ele dizia, era com a tradição. Que tipo de imagem de si e da poesia leva um homem a manter essa posição? O que está em questão é a relação do poeta com seu tempo e o seu espaço de atuação. Fiz um levantamento com a maior abrangência possível. Entrevistas, depoimentos de época, fortuna crítica formam um mosaico onde não só a figura de Dante Milano se revela contraditória e multifacetada, mas também a de Bandeira, Drummond, Schmidt, e o próprio sistema literário modernista ganham nesse garimpo novas possibilidades de leitura. Há fatores extra-literários que determinam o tipo de reconhecimento que o escritor terá. Dante Milano me forneceu, por falta, por ausência, a oportunidade de apontar as estratégias de construção da imagem pública. Seu retraimento as torna mais evidentes. Escrever sobre a política literária, sobre a formação de opinião, foi a forma que encontrei para refletir parte das experiências adquiridas aqui no Rio de Janeiro nos últimos cinco anos. O que, no final das contas, não me livrou da impressão de estar falando de mim como de um personagem.
Rio de Janeiro. 1996
Sol sem imagem está em