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Entrevista a Floriano Martins e Elys Regina Zils, Agulha Revista de Cultura # 222 | janeiro de 2023

Breve conversa com Thomaz Albornoz Neves | Este brasileiro, nascido em 1963, a qualquer momento o encontro com a sua obra nos surpreende, pela grandeza em duplo sentido: a extensão de seus escritos, sua busca inquieta de uma magia do tempo, e a densidade dessa procura, o modo como viaja pelos rios mais subterrâneos da essência poética, como ensaísta, tradutor e poeta. Mas sobretudo com a percepção que o conduz pelos caminhos com uma passada firme de quem está sempre aberto para tudo o que a paisagem tenha a lhe ofertar. Este número de Agulha Revista de Cultura é um reconhecimento dessa grandeza, expressa recentemente na forma de três livros fundamentais: À espera de um igual (2020), Oriente (2021) e 24 verbetes (2022). No diálogo a seguir conversaremos um pouco sobre eles.

FM | Naturalmente, cada leitor acaba por formar a própria linha de parentesco de um poeta de sua preferência. No prefácio do volume que reúne tua poesia – ah este belíssimo título: À espera de um igual, com sua força sedutora e mesmo desafiadora – o uruguaio Rafael Courtoisie situa a tua poética em uma quadra múltipla que eu sinceramente não identifico ao te ler. Para mim, a tua referência clássica vem da poesia desse raro que é Dante Milano, assim como a veia experimental a encontro melhor sintonizada com Francis Ponge e a síntese comparativa com Juan-Eduardo Cirlot. Talvez estejamos os dois errados e seja outra a tua linhagem. Acaso poderias nos aclarar algo a este respeito?

TAN | É curioso, Floriano, mas a linhagem de um poeta pode não ser a mesma dos seus poemas. Quero dizer, muitas vezes me peguei apagando minhas influências, escrevendo contra elas. As tirava dos versos, mas as mantinha em mim. Menos que de autores, minha formação foi feita por poemas esparsos. Ou melhor, por determinados versos desses poemas. No começo, me interessava o poder que as palavras têm de transformar minha percepção do mundo. Eu era um caçador de revelações. Os poemas 4 e 6 de O capuz do olhar (2018), livro que encerra À espera de um igual e que revisita o caminho do poeta que surge através dos meus poemas, ilustram melhor a que me refiro.

4

Rio de Janeiro, 1982 

Peculiar leitor de poesia

Só se interessa por alguns poemas de uns poucos poetas E

mesmo o poema escolhido rara vez permanece inteiro

apagado pelo clarão daquele verso único que o captura

Tendo conhecido a força dessa experiência lendo

está determinado a repeti-la também escrevendo

Persegue a centelha, o rapto repentino

da vida pela linguagem

Não nutre interesse algum nos poetas

Ler o que se escreve sobre eles e sobre as suas obras

lhe parece uma espécie de sacrilégio

Para que dissecar a estrutura de um poema contextualizá-lo

na vida do autor e na galeria da língua

embutir-lhe um ismo, se o que vale já está ali, nele mesmo?

Sim, é sabido

Há toda uma indústria em torno do verso

guiando a voz depois de ouvida

que também é conhecimento

Mas para ele há mais no que ignora de Safo do que sabe sobre Rimbaud

Ou Vinícius

A Literatura, ou seja, a soma das suas leituras essenciais

resiste a ser um todo definido e definitivo

Pensar num contexto poético brasileiro

restringir o poema à sua língua

lhe parece o mesmo que reduzir o homem à sua espécie

Se termina por aprender idiomas

não o faz através de um curso sistemático

(como a lógica, a gramática o tortura)

mas através da poesia e com um dicionário

Dito em outras palavras

Se aprende uma língua é para ler poemas

Traduz para tomar posse

É um processo de revelações

Muitas vezes, no primeiro entendimento

dúbio e nebuloso

a impressão é de ter se aproximado tanto

da origem do verso na mente do autor

quanto daquele silêncio onde as palavras se formam

Aprender um idioma através do poema

remete ao silêncio onde nascem as palavras

que é o mesmo da poesia

6

Folheia os ensaios nas livrarias pela riqueza das citações

Não pelo pensamento dos ensaístas

O pensamento sempre almeja algo, é inacabado

e ele procura a fenda que a beleza abre nas palavras

O subsolo da PUC, embaixo dos pilotis da Faculdade de Direito onde

o Papaléguas vende seus livros e revistas é escuro e acolhedor O

lugar perfeito para a solidão que sente

Saudosa de inverno, albina no trópico

À direita de quem desce as escadas para o refeitório comunitário há

um balcão de bar

e bancos dispostos como os de trem contra a parede sem janelas As

estantes verticais giratórias

ficam entre as mesas cobertas pelas publicações à venda

Aquela gruta é seu lugar de leitura

Esvazia durante cada período de aula

e quando lota de repente a interrupção é bem-vinda

porque traz os amigos e as amigas

de passagem até o começo da aula seguinte

Além das aulas, também evita

a envidraçada e asséptica Biblioteca do terceiro andar

Lá, as pessoas parecem ler por profissão, circulam com pressa

e tratam os livros como instrumentos para matar o semestre

Já nós aqui, à meia-luz, fazemos tempo

Um tempo denso de ar viciado que demora mais, como na praia

Ao contrário da Biblioteca, os livros do Papaléguas

são objetos valiosos cedidos com generosidade a quem o frequenta

Tanto desprendimento aumenta o cuidado com os livros

sempre repostos à posição de venda nas estantes ou nas mesas

O lugar rescende a vinho barato, a cerveja derramada e, senão a maconha,

a maconheiros vindos do pebolim na Vila dos Diretórios

Entre nós, é um rito de passagem superar o crivo

desse culto camelô e ter poemas mimeografados ali

entre Vallejo, Artaud e Cacaso

Às vezes, enquanto folheia no encalço de pérolas

o Papa e sua melena rasta na penumbra

são para ele quase como quando o néon some

Epígrafe em um daqueles ensaios

a primeira estrofe de Éluard que lê mais que pérola é uma aparição

Por ela compra o livro sobre Surrealismo

e sobe ao terceiro andar pelo poema original nas Obras Completas

Retira o tomo da Pléiade, em papel bíblia, sem abri-lo sequer

e tenta voltar ao seu canto no fundo da cantina

Mas está lotada

Sai da Universidade para a luz da tarde

sentindo na bolsa de pano o peso dos livros não lidos

imantados por esse tipo de expectativa

que se tem quando pressentimos epifanias

Mas, para a sua surpresa, a estrofe em francês não chega aos pés

da tradução da Sra. Eugénia Maria Madeira Aguiar e Silva

Nem versão alguma que viesse a pôr os olhos nas semanas seguintes jamais chegou

fosse a do Zé Paulo, a do Quasimodo, a do Beckett ou a do Octavio Paz

– que se permite a heresia de abolir da sua tradução ao espanhol

justo os dois versos que o elevaram –

Diz a estrofe final

do poema sem título que faz parte da coletânea Facile, de 1935:

Femme tu mets au monde un corps toujours pareil Le

tien

Tu es la ressemblance

 

e traduz a portuguesa:

Mulher tu dás à luz um corpo sempre semelhante O

teu

Tu és a semelhança

 

Éluard – e a tradutora com o seu “dar à luz”

a provocar tanta ternura pela Língua Portuguesa –

cria uma imagem de mulher que se renova nela mesma diante do leitor

E o que mais ocorre quando olhamos fascinados para a mesma pessoa

senão a impressão de estarmos a olhar sempre pela primeira vez?

Foi ler a um só tempo o movimento e sua origem que o suspende Ele

vem de locuções estáticas, vem de

Puedo escribir los versos más tristes esta noche

 

Ele vem de isto como aquilo

Cultivar o deserto como um pomar às avessas

ou

y sus muslos me escapaban como peces sorprendidos

Aquela alquimia verbal

a palavra criando algo que até então não existe mas que é real

agindo sobre o presente imediato do leitor

em vez de remetê-lo ao tempo em que foi escrita

dá um novo poder ao ofício

E por não ser retórico

esse poema se ajusta ao seu errático ritmo de leitura

Salteado, caçador de flashes

Alguém já escreveu como ele, sem saber, pretendia

A evidente questão que se coloca ainda não chega a pesar

Como fazer assim, à sua maneira?

Por ser da fronteira com o Uruguai, a biblioteca de casa era naturalmente bilíngue. Minha formação não diferenciou a leitura dos brasileiros e portugueses com os espanhóis e hispano americanos. Tenho vínculos com vários poetas vizinhos. Em 1996, Rodolfo Alonso traduziu Sol sem Imagem para a edição bilíngue que o Zé Mário publicou na Topbooks. Blanca Varela e o próprio Courtoisie também verteram meus poemas. Esta apresentação foi originalmente escrita para a edição que o Gustavo Wojciechowski fez dos meus poemas para a Yauguru, em Montevidéu. E me agradou a ideia de ter um olhar descentralizado, um olhar não brasileiro, apresentando a mesma edição aqui. Concordo contigo, embora também entenda que essa leitura – como bem dizes sobre cada um ter linhas próprias de parentesco – reflete a sua visão da nossa poesia e reconhece ecos onde nós não os ouvimos.

A evolução do meu estilo parte de uma apropriação de certos autores. O modelo romântico de poeta na adolescência é nerudiano (o Neruda hermético de Residencia en la tierra) transfigurado pela descoberta do verso de Éluard e de Char. Mas não saberia dizer com que intensidade se notam esses reflexos em Renée e em Sol sem imagem. É claro, Éluard deixou uma galeria de influenciados que eu também me apropriei: Elytis, de Sol Primeiro; algo no vocabulário neutro, o ambiente onírico, em Schehadé; a erótica de Paz. Não é possível negar a presença formal de Mallarmé nos fragmentos de “O Sono” e tampouco de João Cabral (e Valéry) na minha obsessão pela concisão. Uma obsessão que implodiu e se dissolveu em Versos para poemas não escritos, essa tentativa de escrever uma poesia sem poema, feita entre 2010 e 2015.

Apesar de ter escrito contra os meus mestres, tentando encontrar uma voz em que me identificasse por sobre a deles, não posso afirmar que me reconheça nos meus poemas. Se me leio, é como se eles tivessem sido escritos através de mim, apesar de mim.

Quanto ao Milano, não. Dante Milano chegou na minha vida por uma obrigação acadêmica. E o que me levou à sua biografia – uma biografia construtivista e experimental – foi a oportunidade que o seu comportamento recluso e avesso à fama me ofereceu para discutir os mecanismos da legitimação de um poeta no contexto literário modernista. Eu me perguntava como é possível que alguém com o seu talento fosse tão pouco lido. O que me atraiu em Dante foi a sua recusa em frequentar o stablishment literário, a sua aposta no texto como único responsável pela formação do prestígio.

Já Cirlot, possuo o seu inevitável Dicionário de Símbolos, na bela edição da Ciruela, e a mesma inquietação mística, espiritual. Nosso parentesco não é direto. Certas imagens de Renée remetem ao imaginário surrealista e à riqueza das suas associações.

Minha afinidade com Ponge vem do olhar distanciado sobre a realidade, essa perspectiva que descobre no cotidiano, nos objetos, dimensões até então despercebidas. Em Michaux me interessou a sua exploração da consciência ao ponto de tornar a escritura uma atividade secundária da experiência. Sua busca no limite do que não é nomeável, do que não pode ser dito, é a mesma que me levou aos orientais. Michaux é um dos meus verbetes. Ponge é só uma epígrafe.

ERZ | Na nota de apresentação do seu livro 24 verbetes você afirma: Convém esclarecer que não me tornei fluente em grego, sueco, russo ou romeno. É uma heresia, se sabe, mas para dar forma às minhas tentativas não foi necessário dominar o idioma, bastou dominar o poema. É dizer, esgotar o significado original de cada composição. Sobre essas traduções provisórias, como você as chama, poderia comentar mais sobre esse processo tradutório?

TAN | Sim, Elys. Assim como nunca premeditei o poema nem o poeta que nasceria dele, o tradutor que me tornei surge de um esforço para ler melhor aqueles poetas que me formaram. No caso da poesia chinesa e japonesa clássicas, fui levado por uma necessidade de descobrir a poesia que existe por trás de poemas que eu intuía serem maravilhosos, mas cujas versões me decepcionavam. E te confesso que com algumas exceções a maioria das traduções oscila da literalidade à adaptação sem equilíbrio algum.

Não ocorre o mesmo no caso dos poetas do ocidente que verti ao português. Há traduções excelentes de muitos deles para as línguas que conheço. Meu processo consiste em cotejar essas versões e através delas estudar os originais, procurando a melhor síntese para o meu ouvido de leitor. Esgotar o significado de um poema em uma língua que não domino não é difícil. Difícil é identificar e transmitir algo do timbre particular daquele poeta na versão realizada. Daí que as considere provisórias e esboçadas. No fundo, todas as minhas traduções resultam da tentativa de refazer o processo de criação daquele poema estrangeiro em português. A diversão é ser aquele poeta, incorporá-lo verso a verso durante o processo da tradução. Faz lembrar o Versiones y Diversiones, que melhor título para um livro de poemas traduzidos que esse do Octavio Paz?

FM | Na mesma nota, encontro uma afirmação tua com a qual estou de completo acordo: O bom tradutor é o que some, não o que aparece no poema. Este teu livro é ao mesmo tempo uma aula da perspectiva crítica e a prova de que no poema traduzido importa mais a percepção das raízes essenciais da Poesia do que o domínio do idioma em isolado. Estava agora mesmo pensando em critérios de seleção de autores em uma mostra, justamente quando recordo que Desmond Morris em seu livro sobre a vida dos surrealistas optou por deixar Paul Éluard de fora. A tua seleção de autores para 24 verbetes, atendeu a que motivações?

TAN | Bem, eu poderia estender a afirmação e dizer que o bom poeta também é aquele que some do poema, no sentido de permitir que a linguagem se expresse por todos e por ninguém, anônima. Um exagero para uma cultura como a nossa, tão apegada às circunstâncias individuais, ao poeta como personae. Não tive bem um método, Floriano. Me parece que foi uma questão de aproximação, de afinidade e de admiração.

Procuro na tradução a transmissão que se dá entre mestre e discípulo nos rituais monásticos de ordenação, sem palavras, de coração a coração. O entendimento tácito. De tal modo que ao traduzir, não tento escrever um poema igual ao original em português. Tento escrever um outro poema com a mesma poesia. Pode parecer um jogo de palavras, mas não é. Sou fiel aos originais dentro dos limites que me permitam captar a sua poesia e transmiti-la ao português.

Não conheço o livro de Morris. Se há critérios para excluir Éluard, são arbitrários. A altura poética do Movimento Surrealista diminui sem Paul Éluard, mas Éluard não é menor fora do Surrealismo. Grosso modo, André Breton, Paul Éluard e René Char são o Surrealismo (na poesia), os demais orbitam na energia irradiada por eles. E desconfio – não se pode provar uma provocação assim – que Breton seria um poeta maior do que foi sem os dogmas que criou.

Minha seleção obedeceu ao vínculo emocional com os poemas traduzidos. Ao profundo amor que tenho por eles. Não quer dizer que admire os poetas com a mesma intensidade. As traduções pagam uma dívida de leitura com os poemas, os verbetes tentam acertar contas com o processo criativo dos autores e a forma como cada um enfrentou os dilemas da sua época. A relação entre arte e ética, basicamente. Se eu fosse citar um exemplo de coerência entre obra e vida, diria Montale. Se, por outro lado, me pedissem exemplos de incoerência, diria que em matizes diversas Blaga, Ungaretti e mesmo Éluard são indefensáveis.

FM | Completando a tua fundamental trilogia, o livro Oriente, no tocante ao Japão, em especial, me recorda a observação de Roland Barthes de que no haicai desaparecem as duas colunas centrais da escrita clássica ocidental, a descrição e a definição. Se a isenção do sentido, por um lado, particulariza o haicai, por outro lado não se pode dizer precisamente que no Ocidente nos percamos em um excesso de sujeito. Qual o teu entendimento comparativo, dessas duas operações criativas, se cabe, afinal, compará-las?

TAN | Barthes tem razão, embora o haicai, em especial o haicai de campo, onde Basho pontifica, para ser bem-sucedido deva, na captura do que acontece aqui e agora desdobrar-se. A descrição dos sentimentos diante da fugacidade da existência, o tom austero que transmite a modesta impessoalidade do poeta através da simplicidade do poema, a misteriosa integração entre a forma e o conteúdo, de tal maneira que o verso nasça da experiência e  a expresse com o mínimo filtro possível de processo conceitual, são características dessa poesia que refletem valores japoneses. Por outro lado, concordo que entre nós a impessoalidade seja menos frequente e que haja uma valorização do indivíduo. Não que ela seja necessariamente negativa. A personalidade do poeta muitas vezes é um elemento a mais na atmosfera da sua poesia e contribui para a forma como ela é lida. Nós cultivamos o personagem, nos projetamos nele. Talvez seja uma faceta da nossa imaturidade.

Alguns diriam as quadras, mas, a rigor, não há no ocidente um gênero paralelo ao haicai. E isto se torna evidente se entrarmos nas regras de composição e no acervo simbólico de conteúdo. São tão complexos e minuciosos que uma tradução que os considere não pode abrir mão de notas para cada verso do poema. Não é o meu caso. Minhas versões são livres e não possuem valor filológico algum.

ERZ | Você é poeta, tradutor e ilustrador. Dito isso, como essas três áreas convivem no seu dia a dia? Elas se retroalimentam? Por exemplo, é possível ver semelhanças com a potente simplicidade da arte chinesa na estética quase minimalista das suas ilustrações, em 33 esboços.

TAN | E agora, graças à pandemia, estou encerrando quase três anos de atividade como tipógrafo digital, já que as facilidades de programas como o in design desestimulam o artesão manual. Eu queria mesmo era ter montado um ambiente como o do Cléber Teixeira, da Noa Noa, em Florianópolis.

Não há retroalimentação propriamente dita. As áreas, se esgotam. Quando uma seca, surge a outra. Desenhei entre 1981 e 1999. Tenho pouco mais de 90 esboços nascidos do gesto, do estado de espírito e do contexto da minha vida então. A maioria dos esboços foi feita nas primeiras páginas de livros, na mesa de papel de um bar, em guardanapos. São coisas simples, meio naïf mesmo. Olhando para eles hoje posso resgatar onde eu vivia, com quem eventualmente estava, o que lia e como me sentia ao traçar aquele desenho. Como em um diário de imagens.

É claro que há uma relação entre a despretensão do traço com a espontaneidade de alguns estilos da caligrafia oriental. Uma relação que eu só fui identificar mais tarde. Vejamos o desenho que está na capa de Renée. Eu não tinha a menor ideia da arte do movimento único ou do abandono controlado e mesmo assim desenhava com o estado de espírito e com a respiração.

Cada uma dessas linhas são expirações. Então sim, há uma afinidade de sensibilidades – como a de um homem das cavernas teria com um calígrafo refinado (e aqui eu deveria inserir: risos) – embora não haja nada de oriental no meu punho.

ERZ | No Brasil ainda conhecemos muito pouco da cultura e arte oriental. Porém não precisamos ir tão longe, conhecemos pouco incluso da literatura dos nossos países vizinhos. Na sua opinião, porque no Brasil se conhece tão pouco sobre a literatura que não seja europeia ou estadunidense? Nesse sentido, recordo a tan ed. Esse seu projeto almeja reunir títulos de autores cisplatinos, em espanhol, português e portunhol. Qual a importância de iniciativas como estas?

TAN | Somadas idas e vidas vivi uns 12 anos no Rio de Janeiro e outros oito campos afora, talvez eu tenha me tornado o que se convencionou chamar de desterrado, um homem de mundo. Porto Alegre olha ao Rio e São Paulo abanando o rabo. E, para o Rio e para São Paulo, o Brasil que importa só existe lá. Generalizo, eu sei, mas a centralização é ainda resquício colonial. É natural que procurem modelos na Europa e em Manhattan. Os franceses replicando Blanchard e Jaccottet e os americanos Hass e Glück (estou meio defasado, talvez os nomes sejam outros, mas o estilo é o mesmo, te asseguro).

O fato é que entre o Brasil e o restante da América Latina existe uma indiferença mútua. Salvo um trabalho persistente, hercúleo, como o teu, Floriano, quem mais faz ponte com os autores do continente? Por outro lado, é interessante observar como os poetas hispano-americanos estão conectados entre si e com o circuito literário espanhol através de editoras, prêmios e festivais. A distância entre os poetas brasileiros e Portugal é maior.

Muito da nossa falta de integração se deve ao mercado editorial. É uma situação secular, conjuntural, que não caberia neste espaço. A tan ed. nasceu da ideia de uma coleção que obedecesse ao mesmo padrão gráfico dos meus desenhos e fosse exposta como quadros em uma exibição. Projetei imprimir tiragens numeradas de doze títulos de autores que estivessem entre as costas de Porto Alegre e as costas de Montevidéu, autores cisplatinos, na falta de uma denominação menos genérica. Em março alcanço a dúzia com o poeta colombiano Felipe García Quintero e encerro. Dirás que a Colômbia está longe da cisplatina e eu te direi que boicoto minhas próprias diretrizes em favor de um bom livro de poesia.

Ignoro a importância de iniciativas como esta, Elys, com toda a sinceridade. Se eu fosse pensar na repercussão do que realizo não teria feito nada. Apesar de não ser um projeto comercial, pretendo vender o número suficiente de exemplares para cobrir o custo do catálogo. Para isto conto apenas com o boca-a-boca on line. O percentual de distribuição e venda em livrarias físicas inviabiliza o projeto. É quixotesco.

ERZ | Após suas extensas pesquisas, que resultaram nas obras Oriente e 24 verbetes (Ocidente), quais são os seus próximos projetos?

TAN | Minha primeira obrigação é viabilizar a coleção este ano, isto é, fazer com que circule, alcance leitores e exista para as pessoas que se interessam por poesia no Brasil e no Uruguai. Os quatro livros que publiquei pela tan – a trilogia e Pós-escrito a Dante Milano (biografia que saiu do prelo semana passada) – me deixam vazio, hibernando. Depois de escrever um único poema em cinco anos, não sei qual Thomaz me aguarda. Só sei que o poeta desses livros não existe mais em mim. Espero que quem quer que surja de um improvável livro futuro seja alguém em quem eu ouça a minha própria voz. Alguém diante de quem eu possa me dizer: então Estranho, finalmente nos encontramos.

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tan editorial

Idealizada por Thomaz Albornoz Neves, a chancela tan ed. reúne títulos  de autores cisplatinos e afins. São obras de fotografia, arte, poesia, ensaio e relato escritas em português e espanhol (com alguma pitada de portunhol). O empreendimento é solitário, sazonal e sem fins lucrativos. Os livros têm a mesma identidade gráfica e são, na sua maioria, ilustrados com desenhos do editor. A tiragem varia entre 75 e 300 exemplares numerados.