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Paulo Franchetti – Uma entrevista essencial com o poeta e crítico paulista.

A entrevista foi realizada por Pedro Marques Neto e Francine Weiss Ricieri, docentes de Literatura Brasileira da Unifesp e integrantes do Projeto Literatura Brasileira no XXI.

Você fala tanto com especialistas, em artigos originalmente publicados em revistas científicas bem qualificados, quanto com o público carente por alguma formação cultural em jornais de grande circulação. Ao mesmo tempo, os textos, tal como reunidos, desenham um longo período de reflexão que certamente impactou a seleção do que entraria no volume –porque você deixou muito material de fora, sim? Livros de poesia para jornais, dispondo de pouco espaço, você prefere a contenção no uso de conceitos, convertidos em ferramentas de análise que convidam à leitura, à inflação conceitual, em muitos estudiosos perdida em si mesma, como uma espécie de exibição intelectual. Por exemplo, no texto “Funções e Disfunções da Máquina do Mundo”, livro de Haroldo de Campos de que muitos gostam ou desgostam sem saber por que, você demostra claramente que o poeta, que passou parte da vida defendendo a abolição do verso metrificado ou livre, faz um manejo deficitário, para o ouvido crítico, ou experimental, para o olhar generoso, dos decassílabos heroicos ou da terza-rima. Por que, hoje, ainda é preciso frisar o compromisso do estudioso e do professor com a apreciação do texto literário?
Paulo Franchetti. Quando Osvaldo Silvestre, inconformado com a minha falta de iniciativa, pediu-me que lhe enviasse textos ainda não publicados em volume, não me fiz de rogado: mandei-lhe quase tudo que encontrei nos arquivos de computador, quase um milhar de páginas. Deixei de fora apenas textos em parceria e coisas que realmente não valia a pena. Em resposta, ele sugeriu a organização de três volumes: sobre poesia e crítica, sobre ensino de literatura, sobre literatura e cultura portuguesa; mas se concentrou no primeiro, sugerindo a distribuição dos textos em dois conjuntos, bem como a ordem sequencial no interior de cada um. O resultado é o que se vê: mais do que uma reunião de textos esparsos e publicados ao longo de décadas, temos aí um desenho interpretativo do percurso, no qual me reconheço. É verdade que muita coisa ficou de fora, seja pelo recorte temporal, seja em nome de um equilíbrio entre as duas partes. Mas o que foi reunido me pareceu bem escolhido.Ao considerar a seleção feita pelo Osvaldo o que me deixou muito feliz foi constatar ele escolheu textos de natureza e locais de publicação muito diversos. Porque foi um reconhecimento de um esforço e preocupação que determinaram a minha escrita desde os primeiros artigos que publiquei: dirigir-me sempre a um público muito amplo, mas sem diminuir a tensão crítica, e, sobretudo, sem paternalismo pedagógico. Evitar a complicação desnecessária é um princípio, como também é um princípio eliminar citações dispensáveis ou inúteis. O que não quer dizer que dessa atitude resulte sempre um texto de entendimento imediato, pois é claro que mesmo em linguagem corrente e em boa disposição de diálogo há questões e ponderações que têm uma dificuldade inerente, uma complexidade que não é possível eludir ou baratear. Quanto à última parte da pergunta, creio que, no estudo da literatura, sem o compromisso com o texto literário não se faz coisa de interesse. Afinal, éesse compromisso que define o campo. É certo que nos últimos tempos, a área denominada “estudos literários” tem abrigado todo tipo de trabalho. É uma rubrica generosa, para dizer de modo simpático. A máquina de produção de “papers” criou um novo normal, no que diz respeito ao nível e ao pertencimento ao campo. Não é raro em teses e congressos acadêmicos que a obra literária seja apenas um pretexto para um exercício de método, ou que alguns fragmentos de obras funcionem como provas de asserções gerais, em geral retiradas de áreas de saber em que o autor desse tipo de estudo “literário” tem dificuldade de se mover ou sustentar. Nesse tipo de trabalho, a descrição minuciosa de uma obra ou a sua avaliação crítica ficam naturalmente prejudicadas. Nisso não parece haver grande mal, pois em regra trabalhos desse escopo não são lidos por muita gente. Uma dessas estatísticas imaginárias repetidas no meio acadêmico de língua inglesa e registrada num texto provocativo da revista Nature diz que a média de leitura de umatese é de 1,6 leitor, incluído aí o próprio autor. Talvez seja um pouco mais, já que a banca em princípio também lê. O problema é que esse tipo de trabalho destinado não à leitura posterior à defesa ou à aceitação pelo conselho de uma revista acadêmica, mas ao cumprimento de exigências de titulação ou produção acaba por viciar a linguagem e por fazer perder justamente a noção de compromisso do intelectual das ciências humanas, que não é só compromisso com o material do seu campo de estudo, mas também compromisso com a sociedade. Basta observar os meios de comunicação para perceber como, apesar do enorme crescimento da universidade e da pós-graduação no Brasil, intelectuais reputados no seu campo de trabalho têm uma presença tímida ou nula nas principais interfaces de comunicação. Com a sua ausência o lugar do intelectual é ocupado, da filosofia à crítica literária, passando por outras áreas, por charlatães de todo nível. O paradigma, no caso da filosofia, é o influente agitador de direita querecentemente faleceu vítima da doença que ele dizia não existir. Essa recusa ao discurso dirigido a um leitor não especializado também ocorre no interior das universidades. E não apenas com a “saganização” do docente que assume o compromisso de falar para público amplo. A recusa ocorre a partir do momento em o trabalho em sala de aula, em nível de graduação, passa a ser visto por muitos professores como mero encargo do emprego, aborrecimento, empecilho à pesquisa, perda de tempo. No entanto, do meu ponto de vista é a atividade em que mais se exige do professor, a mais importante, que deveria ser exercida preferencialmente pelos mais experientes e mais conceituados, porque é na sala de aula da graduação que se pode atuar mais decididamente para a criação da consciência crítica e consequente difusão do debate qualificado na sociedade. Por fim, uma nota sobre a forma de abordagem e apresentação dos textos sobre os quais escrevi: ela pode corresponder a uma inclinação pessoal, claro, mas sem dúvida ela tem um modelo. Esse modelo, que sempre tive presente, é, no que diz respeito aos traços que vieram na pergunta, a escrita de Antonio Candido.
O texto “A crise em crise” ocupa uma posição central nesse livro, não apenas por emprestar-lhe o título que, acompanhado do subtítulo “notas sobre poesia e crítica no Brasil contemporâneo” ajuda a definir um núcleo recorrente em consideração no conjunto. Também seria coerente assinalar o modo como aí se aguçam algumas das inquietações centrais ao projeto, dentre as quais gostaria de destacar a questão da leitura e da prefiguração de um leitor na escrita poética, o que incide em noções como tradição, ruptura, ensino, formação de públicos, procedimentos de publicização e estabelecimento de confrarias. Então, se, historicamente, você aponta a necessária presença de um leitor familiarizado com uma tradição em recusa para a viabilidade, entre outros, do projeto modernista, constata, também historicamente e em contrapartida, o aniquilamento (ou banimento) da viabilidade atual daquele mesmo tipo de leitor o que redundaria em “exaustão do procedimento” (em sua infinita reedição), bem como das “tensões que o estruturaram”, resultando em “pacificação” de uma crise antes denunciada, ou, nos termos do livro: a crise em crise. Portanto, ao formular a hipótese a propósito de como um poeta atento e aguçado sobre o tópico “poesia e crise” poderia configurar um “esforço significativo na superação da pacificação da crise”, as considerações que seseguem parecem bastante desalentadas com relação ao quadro poético contemplado (seja ao apontar a banalização de uma nota aguda de Baudelaire, seja ao esmiuçar um livro que parece demonstrar os impasses em discussão). Perguntamos: você poderia referir algum livro, algum projeto de escrita ou mesmo poemas singulares (eventualmente não na poesia local) em que vê formulações alternativas ao quadro um tanto melancólico que descreveu?
Paulo Franchetti. Embora seja verdade que o texto que deu nome ao conjunto ocupe uma posição central, do meu ponto de vista essa posição é dividida com outro, que é um dos meus preferidos e que deu o subtítulo. Trata-se de “Poesia contemporânea e crítica de poesia”, porque é ali que a questão do público previsto para a poesia e para a crítica –recorrente em vários –comparece de modo, por assim dizer, coordenado. E também porque essa questão aparece posta em função de outra, que é na verdade a mais importante: qual o lugar da emoção estética na crítica de poesia hoje? Não quero com isso nomear a emoção presente ou confessada no discurso crítico, mas sim referir-me ao lugar que a produção da emoção como objetivo do texto ocupa nesse discurso. Porque o que vemos usualmente na crítica de poesia é uma descrição técnica ou histórica, ouainda, mais precisamente, uma combinação de ambas, pois a técnica é valorizada ou desvalorizada conforme seu lugar na narrativa da “evolução” do gênero. De fato, poucas vezes a descrição da técnica e a inserção histórica dos objetos poéticos são postas e avaliadas em função da sua capacidade de Na maior parte dos casos, não há indagação sobre o leitor previsto, muito menos com o lugar que aí se reserva ao leitor comum –isto é, ao leitor que não é nem umpoeta do mesmo grupo, nem um especialista ou membro dos círculos intelectuais reconhecidos –na prática da poesia e da crítica contemporânea. Ora, como desde que, com a modernidade, pode ser poesia tudo o que se declare poesia –sobre isso, num outro texto, falo de poesia como gesto num campo de forças –, a recepção crítica passa a ser parte necessária do reconhecimento de uma dada reivindicação de pertencimento ao gênero. Nesse quadro, há uma questão dupla que passa a ser especialmente relevante para mim e que tento responder de muitas maneiras, quando trato da crítica e da poesia contemporâneas brasileiras: qual o leitor previsto por essa poesia e por essa crítica? A quem se dirigem esses textos, em que eles concordam e no que discordam, no que toca ao público que os procedimentos textuais favorecem ou excluem? Por fim, também creio que em muitos casos vale a pena perguntar de que modo se dá um jogo de espelho entre essas imagens, isto é, até que ponto a crítica tenta corresponder ao leitor previsto na poesia e até que ponto a poesia tende a ter como leitor previsto o crítico disposto a esse exercício? Esse exercício tem um grande campo de aplicação, na medida em que vários livros de poesia hoje têm vindo embalados em orelhas, quartas-capas, prefácios e posfácios (não raro tudo isso junto, e de vez em quando ainda acrescido de uma página de depoimentos enviados por e-mail ou trechos de resenhas) assinadas por outros poetas e/ou por professores e críticos reconhecidos.Quanto à parte final da pergunta, posso referir um poeta cuja obra reunida li recentemente com grande prazer e emoção. Um poeta que viveu boa parte da vida fora do país ou enterrado na sua província, refratário às polêmicas e disputas, ausente como ator ou objeto daquilo que Michael Hamburger denominou “guerra de gangues que passa por crítica das novas obras nos jornais”. Sobre seu livro, significativamente publicado à margem do sistema, numa edição autoral e de quase nenhuma circulação, escrevi já duas breves notas nas redes sociais, e a ele espero ainda poder dedicar atenção mais consistente. Trata-se de Thomaz Albornoz Neves, autor de À espera de um igual, volume que reúne seis livros, sendo o primeiro datado de 1985 e consistindo o último em grande parte de retomada e comentário dos anteriores. No polo oposto, não só do ponto de vista estilístico, mas também porque se trata de um livro de estreia, publicado por uma editora com amplo catálogo de poesia e boa divulgação, posso citar Etiópia, de Francesca Angiolillo.
Na primeira nota de rodapé do volume, seu prefaciador recupera uma discussão que sempre perpassa seus escritos, com maior ou menor evidência: oensino de literatura. O prefácio explicita, assim, o modo como você transita livremente das considerações sobre um objeto de análise para os meandros de sua recepção especializada ou para os problemas da recepção escolar, do ensino, do material didático. A propósito especificamente da questão abordada nessa nota, em qual contexto e com quais objetivos você defendeu o ensino de um objeto como “literaturas de língua portuguesa”? Ainda defenderia (em quais termos, se o fizesse) tal proposição?
Paulo Franchetti. O ensino é algo de importância central na minha vida. A maior parte do que aprendi nasceu ou de um estímulo ao assistir a uma aula, ou do trabalho de preparar as minhas próprias. A aula, aliás, para mim é um momento muito especial, no qual não só possotestar as minhas hipóteses, verificar a precisão e clareza do que digo, mas ainda descobrir –no meio de uma exposição ou debate –uma direção nova, relevante e até aquele momento insuspeitada. Creio que os melhores textos que escrevi são os longos prefácios das edições de clássicos da Ateliê Editorial, que têm como público previsto estudantes colegiais e pessoas leigas interessadas em literatura. E gosto especialmente deles porque a sua forma de organização é em tudo parecida com a que têm as minhas aulas, assim como a linguagem que vai neles. Do meu ponto de vista, é muito mais estimulante dirigir-me a um público assim do que a um público de colegas ou especialistas, porque a dificuldade é maior: falando para estudantes ou público em geral, é preciso maisfoco, mais clareza, mais capacidade de apresentação das ideias, menos confiança em palavras-chave e em acordos tácitos vigentes na academia –e também, conforme o lugar e a hora, mais capacidade de síntese. Ora, como eu sempre encarei a aula e a conferência como basicamente monografias, acabo por não ver diferença significativa –a não ser de extensão e de modo de apresentação –entre o escopo e estrutura ideal de uma aula e de um texto a publicar numa revista ou num jornal. Portanto parece-me natural que,interessado na metacrítica, tenha tido ao longo do tempo um forte interesse na reflexão sobre o ensino e sobre a minha própria prática didática.Quanto à referência do Osvaldo, trata-se de um texto que depois veio a integrar o volume Sobre o ensino de literatura. Foi escrito quando se discutia uma reforma na grade curricular do curso de Letras da Unicamp. No IEL2não havia e ainda não há cursos de literaturas nacionais ou de línguas estrangeiras. Não há, por exemplo, uma habilitação em literatura francesaou de língua alemã. As séries históricas eram apenas duas: brasileira e portuguesa. Nesse contexto, o que eu propunha é que em vez de séries determinadas por um recorte nacional, trabalhássemos com um conjunto ali denominado luso-brasileiro, de uma perspectiva comparatista, dentro da qual se buscaria situar e compreender a literatura em português no quadro mais amplo da literatura ocidental. Mas independente disso eu creio realmente que não faz sentido estudar ao mesmo tempo, como disciplinas e literaturasseparadas, a brasileira e a portuguesa. É tão forte a integração entre elas em tantos momentos, que a visão conjunta permite perceber melhor a dinâmica cultural, evitando a escolha do corpus analítico e a valoração estética conforme a obra seja mais ou menos nacional ou se encaixe mais ou menos numa narrativa que tem a determinação nacional como mote e principal operador. Abandonada a assunção romântica de que a literatura é melhor entendida quando determinada ou filtrada por algum avatar do velho volksgeist(manifestação das particularidades nacionais, adaptação distorcida de algum universal literário, caminho de construção da identidade nacional, reflexo da realidade sociológica etc.), muito gasto de 2Instituto de Estudos da Linguagem é onde estão alocados os Departamentos de Teoria Literária, Linguística e Linguística Aplicada. energia e muito debate caloroso –como, entre outros, oque se travou a propósito de Gregório de Matos –simplesmente deixa de ser necessário ou mesmo de fazer sentido. Ademais, repetindo Álvares de Azevedo, “ignoro eu que lucro houvera […] em não querermos derramar nossa mão cheia de joias nesse cofre mais abundante da literatura pátria; por causa de Durão, não podermos chamar Camões nosso; por causa, por causa de quem?…(de Alvarenga?) nos resignarmos a dizer estrangeiro o livro de sonetos de Bocage!
”Seu livro se dedicaria, entre diversos elementos, a uma “operação sistemática, histórica e teoricamente informada, de desmonte da doxa poética e poetológica brasileira posterior ao Concretismo” (Osvaldo Silvestre, no prefácio). Nesse processo, uma dicotomia que reaparece sistematicamente é a discussão da oscilação entre conservadorismo e progressismo de poetas e críticos. O tópico se apresenta muito agudamente nas considerações a propósito de Ferreira Gullar, para mencionar um caso, mas, em especial, na problematização de um lugar comum muito recorrente no quadro em estudo, assim delimitado, ainda, por Silvestre: “pressupor que a reverência ante a poética modernista possa definir o progressismo de poetas e críticos hoje é algo francamente questionável”. Vocêendossaria essa formulação do crítico português? Que tensões lhe parecem merecer consideração quanto a esse juízo, em se tratando o Brasil de um país em que o conservadorismo já se revelou e ainda permanece se revelando tão atuante?
Paulo Franchetti.Creio que muitas questões estão imbricadas nessa pergunta. E não sei se conseguirei discerni-las e discutir cada uma. Não creio que eu me empenhe em desmontar “a”doxa poética posterior ao concretismo. É verdade que as poéticas tributárias do concretismo recebem bastante atenção, como é o caso do texto sobre a poesia de José Paulo Paes e Marcelo Tápia, exemplar nesse sentido. Mas embora essas sejam as que mereceram mais destaque, é certo que nessa literatura –ou até, se quisermos, ficção, embora não tenha –que eu saiba –nenhuma mentira.As circunstâncias em que decidi fazer essa viagem fizeram dela uma experiência de limites. O perigo e a sensação de solidão não foram decorrências do trajeto, mas objetivos dele. Entretanto, o sentido maior da viagem se foi constituindo e revelando ao longo dela: uma busca. E é bem verdade que assalvaguardas do viajante, quando em contraste com a exposição e “viabilidade” dos viajantes “desgovernados”, de fato parecem risíveis. Mas isso, eu creio, porque eram defesas erguidas contra o inimigo errado, e nem funcionaram muito bem. Talvez tenha sido uma pena que eu tenha apagado as crônicas publicadas no Facebook. Se as juntasse tal como foram escritas comporia, eu creio, um típico relato de viagem: anotações diárias econômicas e predominantemente objetivas, dados da hora da partida e da chegada, narração sucinta dos eventos do percurso –tudo determinado pela cronologia e pelo espaço em que se movia o relator. Quando, um ano e meio depois, resolvi escrever o livro, essas crônicas, algumas fotos, e dois ou três registros no celular forneceram o quadro cronológico da aventura e dados factuais. O resto, quer dizer, praticamente todo o livro, proveio da memória. Não sei bem por que apaguei logo aquelas crônicas. Foi por impulso. Mas pensando agora creio que foi porque a viagem, a minha viagem, ficou sendo a que virou livro, e aquelas observações tão objetivas já não me diziam muito e até pareciam apequenar o vivido, agora revivido no livro.
Recentemente, você publicou, em formato digital, Editoras universitárias no Brasil: uma história de sucesso (Amazon, 2021). Como o título indica, o livro recupera um período da história das editoras universitárias no Brasil, história da qual você participou diretamente, já que foi diretor-chefe, entre 2002 e 2013, da Editora da Universidade Estadual de Campinas. Duas questões centrais e convergentes no próprio modo de organização daquele trabalho são: 1) Por que devem existir editoras universitárias?; 2)Por que devem existir editoras universitárias vinculadas a universidades públicas? Ainda que esse seja o objeto mesmodo livro em questão, você poderia, em linhas gerais, esboçar para nossos leitores em que medida, especialmente no contexto político que o país atravessa, são questões tão decisivas para a vida intelectual, entre nós?
Paulo Franchetti.Começo pelo mais evidente: o que distingue uma boa editora universitária de uma boa editora de mercado é que o argumento decisivo para a publicação de uma obra não é o retorno financeiro, mas sim o acadêmico, ou seja, o impacto da obra na consolidação, na expansão ou no aprimoramento de um determinado campo do saber. Entre uma obra de qualidade inferior que promete retorno auspicioso do investimento e uma obra de qualidade superior que, na melhor hipótese, permite prever a recuperação do investimento ao longo de um período largo de tempo, não há dúvida sobre qual a escolha de uma boa editora comercial. Já a escolha lógica de uma boa editora universitária é a oposta. É uma questão de objetivo. Uma editora comercial é uma empresa. O aspecto econômico é determinante. Já uma editora acadêmica tem como objetivo principal o atendimento às necessidades da comunidade acadêmica. Por exemplo, uma editora universitária pode e deve privilegiar a publicação de obras de um campo do saber ainda em formação no país, assumindo os custos de fazer livros para leitores potenciais que só existirão a partir do momento em que um conjunto significativo de livros daquela área específica estiver disponível no mercado. Sua proximidade com a comunidade e o fato de poder dispor de uma consultoria do mais alto nível em cada área do conhecimento, permite-lhe também ter uma atuação importante na escolha das obras a traduzir.De fato, um diferencial das editoras universitárias de primeira linha se apresenta de modo claro quando se considera o seu catálogo de traduções. Um livro traduzido e bem revisado por um especialista implica investimento enorme, como todos sabemos. E, no campo científico, são justamente as obras mais especializadas e mais complexas que dispõem de menor (mas não menos importante) público. De modo que, se as traduções de textos relevantes para o universo acadêmico se fizessem apenas segundo os critérios de mercado, as lacunas bibliográficas seriam muito maiores do que são hoje no Brasil. Ao mesmo tempo, uma editora universitária tem um papel importante, que infelizmente tem sido recusado nos últimos tempos, provavelmente por desconhecimento do que constitui a função de uma editora acadêmica e, principalmente, do que constitui o trabalho editorial. Refiro-me à abstrusa decisão que algumas poucaseditoras universitárias importantes tomaram, durante um interregno no qual as luzes parecem ter se apagado nelas: a de não publicar teses, nem livros que reúnem artigos já publicados em revistas acadêmicas ou jornais. A ideia é que esse material estaria disponível nos bancos de tese ou nos arquivos eletrônicos das revistas. Há mesmo programas de computador que são usados para detectar a porcentagem de matéria já publicada que integra um manuscrito. Esse tipo de argumento é bisonho. Primeiro porque, com a aluvião de teses de mestrado e de doutoramento, uma das funções da editora universitária é justamente a de selecionar aquilo que tem mérito amplo. Segundo porque o trabalho editorial, em tal decisão, parece confundir-se com o trabalho de uma gráfica: impressão. No que toca às teses, a verdade evidente, ignorada por tal proposta de banimento de teses, é que a forma-livro é diferente da forma-tese. Uma boa editora, ao exigir a transformação de uma coisa em outra, opera pela legibilidade mais ampla, pela ampliação do público previsto nos procedimentos textuais. Além disso, o fato de uma obra integrar um catálogo respeitável ou uma coleção e estar exposta numa livraria física ou virtual contribui para a sua difusão, coloca-a mais diretamente no debate público. Num banco de teses só a encontra, basicamente, algum membro da comunidade acadêmica interessado no assunto ou em processo de levantamento de bibliografia. Por fim, há os casos (e não são poucos), em que a materialidade do livro redimensiona por completo a tese. Um só exemplo basta: o trabalho de livre-docência de Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro, intitulado A Erótica Japonesa na Pintura & na Escritura dos Séculos XVII a XIX, publicado pela Edusp. Por fim, há que considerar que uma editora acadêmica, dispondo de um corpo de consultores de alto nível, pode contribuir decisivamente para melhorar um original, mesmo (ou talvez principalmente) quando se trata de uma tese defendida e aprovada.Nem vale a pena comentar o outro produto banido por algum novato editor de instituição renomada: o livro que é uma reunião de artigos. Seguramente qualquer pessoa culta pode elencar rapidamente vários livros fundamentais da nossa área que seriam recusados com base nesse princípio ou no ainda mais mal-empregado argumento de que republicar em livro artigos já publicados é autoplágio! Mas posso referir assim de memória alguns que estariam condenados por tal critério: Literatura e sociedade, de Candido, Sequências Brasileiras, de Roberto Schwarz, Metalinguagem e outras metas, de Haroldo de Campos, Céu e inferno, de Alfredo Bosi…Além disso, em qualquer caso, uma boa recolha de artigos produz de fato um livro, já que a leitura do conjunto reunido diz mais do que a leitura de cada um deles isoladamente –como, aliás, vocês afirmam ser o caso de Crise em crise. Se continuassem a vigorar esses princípios nec caput nec pedes, provavelmente num futuro próximo, quando perguntado sobre qual a função e necessidade de uma editora universitária, eu teria pouco a dizer. Exceto que talvez fosse melhor extingui-las e pagar a editoras comerciais a publicação de traduções ou originais que interessassem diretamente às bibliotecas universitárias. Já quanto à segunda pergunta, eu considero que editoras universitárias de relevo no Brasil são apenas as vinculadas às universidades públicas. Justamente porque entre nós o mercado do livro de interesse predominantemente universitário não é vasto, só uma universidade pública pode manter oinvestimento necessário para a produção e distribuição de livros de qualidade. É verdade que nos últimos anos a situação das universidades federais é de estrangulamento, o que tenderá a refletir diretamente no funcionamento das suas editoras. Mas mesmo assim o catálogo já constituído, a percepção que a comunidade tem da importância de tal órgão universitário e a perspectiva que estes tempos de treva não durarão para sempre têm mantido ativas, mesmo em condições tão adversas, as melhores editoras. Entretanto, a principal ameaça não vem de fora, mas de dentro da universidade –ou melhor, do seu estrato administrativo. Porque a perda de relevância social das Humanidades acaba permitindo que, no interior do campus, assim como nas agências de fomento, oparadigma das ciências da natureza se imponha de modo cada vez mais truculento. Um paradigma no qual o livro tem importância muito reduzida, pois a forma principal de difusão do conhecimento é o artigo de revista especializada, destinado à rápida assimilação e superação. Do meu ponto de vista, nos próximos anos –a julgar pelo que estamos vendo –os principais antagonistas das editoras acadêmicas serão os que vão estar sentados nas mesas de decisão, isto é, os gestores, como agora gostam de se denominar osburocratas e administradores. Defender a existência delas me parece, portanto, uma frente de combate muito importante, na árdua luta para garantir um lugar de alguma expressão para as Humanidades no interior da academia.
Uma questão paralela (mas não secundária) parece acompanhar o percurso do ensaio referido (para não mencionar sua própria trajetória como pesquisador, crítico e professor): aquela que diz respeito à consciência da atuação em um contexto em que os suportes e linguagens se diversificam ou multiplicam em grande velocidade. Ainda que tenha mantido uma publicação muito intensa em livros e artigos acadêmicos, você manifestou em várias ocasiões preferência pelo diálogo entabulado por canais como blogs ou jornais. Ao mesmo tempo, ao analisar a trajetória das editoras universitárias, por um lado, você assinala e valoriza iniciativas que levam à veiculação de obras em livre acesso (citando especificamente experiências como as da Editora da UNESP), embora aponte as dificuldades comerciais da produção em formato e-book. Considerando-se que o próprio livro é comercializado naquele formato e, a despeito das contradições e dificuldades implicadas, como você vê iniciativas que, em outras áreas, constituiriam o que se chama “divulgação científica”? O saber acadêmico é comunicável? Você vê com ressalvas ou com otimismo esse diálogo com a comunidade externa ao mundo acadêmico? Os novos suportes podem democratizar os diálogos ou sua intervenção seria ilusória?
Paulo Franchetti. Queria começar por uma das questões finais. Penso que há vários saberes acadêmicos, isto é, que por saber acadêmico designamos coisas diversas quando falamos, por exemplo, de Física Teórica, Cardiologia ou Literatura. De modo geral, creio que a palavra comum não deve apagar diferenças profundas –especialmente no que diz respeito à forma de construção e difusão do saber –, quando se aplica ao domínio das ciências exatas e da natureza e ao domínio das humanidades. No que diz respeito às Humanidades, creio que o saber não só é comunicável como na maioria dos casos, é produzido para ser comunicado. Há mesmo uma demanda externa de acesso a esse saber. E basta consultar o Google Acadêmico para constatar que muitas vezes estudantes e professores tendem a referir em seus trabalhos obras que em outras áreas seriam consideradas de segunda ou diminuta importância na produção do autor, e por isso rotuladas de “divulgação”. O exemplo mais eloquente nos é dado por uma consulta às vezes em que foi referido cada trabalho deMarilena Chauí. Os campeões são dois livros dirigidos a público amplo: Convite à filosofia, de 2000 (com 8931 referências até a data em que escrevo) e Oque é ideologia?, publicado em forma física em 1992 e em e-bookem 2017 (com 3268 citações). De minhaparte, como já disse acima, penso que a sobrevivência das Humanidades no interior das universidades depende, em parte, da sua capacidade de dialogar com a comunidade externa. Na verdade, na nossa área específica, que é o estudo da literatura, creio que apenas em disciplinas muito restritas existe algum saber que tenha interesse em si mesmo, independente da sua capacidade de intervenção no debate cultural mais amplo. Por isso mesmo a forma preferencial de publicação e a mais prestigiosa entre nós é o livro,por definição um objeto oferecido a um público não delimitado, ao contrário, por exemplo, de um artigo publicado num periódico internacional, em inglês, numa dessas revistas que custam fortunas e só são acessíveis por meio de uma assinatura institucional.De fato, já vi pessoas comemorarem duplamente um artigo aceito num desses periódicos –duplamente porque é um coroamento de um trabalho, pelo reconhecimento do comitê científico; e porque isso significa que o seu laboratórioou grupo de pesquisa será recompensado com equipamentos ou bolsas obtidas da universidade ou de alguma agência de fomento. Já na nossa área, o coroamento de um trabalho de anos –monográfico ou antológico –é a sua publicação em livro por uma boa e reconhecida editora.Quanto à difusão, eu creio que a forma eletrônica é importante e será cada vez mais. Mas não concorre, por enquanto, com a física. Um livro que obtém reconhecimento e gera interesse imediatamente se desdobra hoje em forma eletrônica: ou porque ganha uma edição em formato de e-bookou porque é transformado em .pdf e passa a ser vendido, trocado ou cedido gratuitamente em inúmeros sites da internet. É a versão eletrônica do xerox. A forma eletrônica tem várias vantagens para o leitor: permite busca por palavras-chave, tem preço significativamente menor ou é de graça, é obtida imediatamente. No caso de livros estrangeiros, esse último fator é muito importante. Como também é de grande importância o fato de que alguns leitores, como o Kindle, permitem consulta ao dicionário incorporado com uma facilidade impressionante.Já do ponto de vista das editoras, a publicação em e-booktambém costuma ser uma derivação do livro físico. Isso porque, se for bem editado, o custo de preparação, revisão e diagramação de um e-booknão é muito diferente do custo de um livro físico. Quando um livro já foi publicado e houve algum retorno, seus arquivos podem ser facilmente utilizados para os principais formatos de e-books. Mas eu creio que o lançamento de um livro em formato exclusivamente virtual por enquanto não compensa economicamente, e que o eletrônico terá a mesma presença e recepção que um livro de papel. Pode ser que existam livros de grande alcance, na nossa área, publicados exclusivamente em formato digital. Mas eu não conheço nenhum. Por isso creio que o livro físico ainda continua a ser fundamental no processo de reconhecimento e difusão de um trabalho.Por fim, os blogs e mídias sociais. Há vários anos mantenho um blog exclusivamente. Nele republico textos que saíram em revistas e jornais, mas não só. Também publico ali coisas inéditas, porque não dependo de linhas no Lattes, nem o meu departamento precisa mais de mim para contribuir para melhor nota na Capes. O interessante é que, quando vou conferir os acessos, percebo que sua distribuição não é simples de entender. Por exemplo, um dos campeões de visualização é um artigo acadêmico sobre a diferença de ordenação dos sonetos de António Nobre nas duas edições do Só! Outro é um artigo publicado num jornal de Campinas sobre o poeta Kobayashi Issa. E também a origem dos acessos é intrigante: é normal que haja acessos das Américas ou da Europa. Mas o que responderia pela grande quantidade de acessos da Rússia, assim como do Japão? Poderiam ser robôs apenas? Talvez, mas o mais provável é que o material ali reunido seja de interesse de estudantes que cursam português ou cultura brasileira tanto nos EUA, quanto na Rússia.A propósito do peso relativo dos lugares de publicação vivi um caso interessante: uma pessoa leu um texto, gostou dele e queria referi-lo numa tese. Escreveu-me então pedindo a referência do lugar de publicação. Eu lhe respondi que era o blog. Na sequência, ela insistiu em saber a revista ou livro e terminou por dizer que se sentia constrangida de utilizar em sua tese um texto de blog… Mas nem por isso deixei de publicar ali textos originais, nos quais pus sempre o mesmo empenho que tenho posto naqueles dirigidos a revistas acadêmicas em que, desconfio, ninguém quase os vai ler.Ah, sim, comrelação ao livro Editoras universitárias no Brasil. O texto foi publicado como capítulo de livro físico em Portugal. Como não é fácil o acesso aos livros portugueses e esse não teve forma eletrônica, fiz a publicação na Amazon, e estabeleci um preço simbólico, menos de 1,5 dólares. Desde que foi publicado, há quase 90 dias, foram vendidos dois exemplares. Um deles, sem dúvida, para os autores desta entrevista. O e-book, ao menos no meu caso, não serve muito bem à divulgação.
Para terminarmos, sua escrita crítica não realiza o encômio interessado por qualquer coisa que não seja o esclarecimento. Mesmo quando você aprecia positivamente poemas e estudos assinados por seus pares de profissão ou de geração, seus textos lembram, ainda que indiretamente, que criticar não é o elogio por si nem a agressão vil, é a análise apreciativa capaz de demonstrar contradições, de frisar inovações pouco evidentes ou mesmo revisar lugares comuns cristalizados pela repetição em práticas docentes ou acadêmicas. Nesse sentido, para você, que como poeta sabe manobrar a espada da ironia (pensemos em seu livro Escarnho-Ateliê, 2009), por exemplo, fazer crítica pode ou deve ter algo de sátira, como gesto que precisa provocar algum desconforto para que o leitor se espreguice e reflita?
Paulo Franchetti. Antes de responder queria registrar que não é comum que as perguntas das entrevistas demonstrem de modo tão claro a leitura e a reflexão cuidadosa que foi feita na sua preparação. Esta entrevista, inclusive, por isso mesmo me parece inaugurar um novo gênero: a entrevista-resenha. E esta última resposta não poderia ir sem o registro da minha gratidão.Eu de fato acredito que, uma vez focado num objeto, o melhor serviço (e a melhor homenagem) que lhe posso prestar é submetê-lo a uma análise séria, sem condescendência, mas de fato sem intuito de agressão. O que não impede que alguns leitores sempre possam atribuir-lhe uma dessas duas qualidades negativas. Mas também acredito que a descrição um pouco irônica de procedimentos e problemas que a repetição de lugares comuns ou a imposição de um julgamento de autoridade torna invisíveis pode ser útil para, pelo estranhamento, provocar a reflexão, trazer para primeiro plano alguma coisa importante que permanecia sem foco. Que essa descrição possa ser inclusive levemente satírica e profanadora não há dúvida, como se pode ver no texto sobre a crise de verso em sua versão contemporânea. Mas não há a priori desejo de tratamento irônico ou satírico. Se ele ocorre é porque, em certas situações, parece uma boa estratégia para chegar logo ao nervo da questão.

tan editorial

Idealizada por Thomaz Albornoz Neves, a chancela tan ed. reúne títulos  de autores cisplatinos e afins. São obras de fotografia, arte, poesia, ensaio e relato escritas em português e espanhol (com alguma pitada de portunhol). O empreendimento é solitário, sazonal e sem fins lucrativos. Os livros têm a mesma identidade gráfica e são, na sua maioria, ilustrados com desenhos do editor. A tiragem varia entre 75 e 300 exemplares numerados.