Lições do Exílio
Sempre percebi, na poesia de Thomaz Albornoz Neves, um obstinado empenho no sentido de procurar dizer o máximo com um mínimo de palavras, o que talvez explique duas de suas mais flagrantes características: uma, de caráter estrutural, ou seja, a fragmentação do discurso; outra, de cunho expressivo (ou, se preferirem, formal), que se revela graças a uma certa espécie de redução do enunciado verbal que poderíamos chamar aqui de capsularismo aforismático, algo sentencioso, mas de inequívoca inspiração lírica. E se ambas estão presentes no primeiro de seus livros em que pus os olhos, Sol sem imagem (1996), mais ainda se evidenciam neste Exílio, que o autor acaba de dar à estampa e que, segundo ele próprio, seria antes “um diário de notas circular (…), baseado em uma experiência de extrema solidão, submetida a uma saturação da linguagem”. Em longo e circunstanciado prefácio que escreveu àquela primeira coletânea, Bruno Tolentino filia o poeta à linhagem do fragmentarismo ungarettiano, mas penso que o mais correto seria filiá-lo a ele mesmo (ou, mais próximo de nós, ao minimalismo de José Paulo Paes), à sua experiência solitária nos confins do pampa gaúcho e à visão de mundo que dela inexoravelmente decorre, sobretudo quando se pensa na dura condição de quem se confronta cotidianamente com um horizonte (e uma visão dos seres e das coisas) sempre em fuga. Basta que se leia, para atestar a desolação dessa paisagem, o segundo poema do livro:
Pampa sem fim
Me torno
distância contemplada
E já não há distância
E é justamente essa paisagem que determina o “exílio” a que se refere o poeta, um exílio no qual só resta espaço para a realidade, ou o que dela restou e que se opõe à própria linguagem:
Escrevo contra a escritura
e o que escrevo
é o que resta da realidade
É daí, segundo penso, que se origina uma outra característica crucial da linguagem poética de Thomaz Albornoz Neves: sua extrema austeridade, sua nenhuma concessão às guirlandas verbais, esse feu d’artifice que contamina, ainda nos dias de hoje, boa parte da poesia brasileira. O que lhe resta é o cerne não apenas das palavras de que se vale, mas também o daquilo que vê, se é que algo pode ser visto em sua caducidade fenomênica. Em Sol sem imagem, mais precisamente num poema excepcional, “O sono”, ele escreveu: “O que se vê é o eco do que não é visto”. Essa visão do mundo físico que se esquiva ao olhar do poeta está também presente em muitos dos fragmentos de Exílio, com o agravante de que, nestes poemas mais recentes, nem mesmo a si próprio o autor consegue distinguir, uma vez que o dissolvem as névoas do estranhamento e do olvido:
Penso como quem esquece
como quem cai subitamente no esquecimento
e me expresso
Ou:
Quem escreve é um estranho para mim
e me torno um estranho ao fazê-lo
Ou ainda:
Estranho thomaz
que em mim se esquece dele mesmo
Há em Exílio, portanto, duas vertentes de distanciamento: uma, de si próprio; outra, das coisas que o cercam. Talvez por isso mesmo, a poesia de Thomaz Albornoz Neves aspire a um estado não verbal da linguagem. Sua brevidade e concisão nos parecem sintomáticas dessa ambição, uma ambição, diga-se logo, que adquire um caráter duplamente filosófico, pois nos remete às dimensões da metafísica e da ontologia. Assim, o ser que o poeta persegue não se dá à luz da percepção sensorial. Ele está além e não pode ser apreendido como fenômeno, mas apenas como essência, como kantiana coisa em si, e, não raro, dilui-se panteisticamente nos elementos que o rodeiam e que jamais se detêm em seu permanente movimento de vir a ser:
O vento no areal
só parece estar passando
Eu sou
o interior de sua presença
Poeta leitor de poetas, Thomaz Albornoz Neves é poeta para poucos e, como poucos, não se entrega inteiramente a uma primeira leitura, ainda que seus textos não ofereçam qualquer dificuldade no nível da língua ou da linguagem, que é sempre limpa. O desafio que ele nos lança é de outra índole: aquele que nos impõe todo autor que busca uma realidade para além das aparências do mundo físico. E ao mergulhar nesse universo rarefeito, cujas formas se esgarçam até a deformidade, o poeta nos convida a partilhar de uma percepção das coisas que se processa abaixo da epiderme daquilo que estamos acostumados a ver em nosso alheamento cotidiano, essa distração que falseia o real e o converte numa banalidade. “A natureza ama ocultar-se”, já dizia Heráclito de Éfeso sete séculos antes da Era Cristã. É esse outro lado da realidade que Thomaz Albornoz Neves tenta nos revelar, descrevendo-o, como o vento dos pampas, “entre rajadas”.
Exílio está em