tan ed

tan ed

À espera de um igual, por Paulo Franchetti

I

Insônia
Tenho a impressão de que desenvolvemos no Brasil uma espécie de aversão à lírica. João Cabral tem um papel relevante nisso, sem dúvida. Assim como a poesia concreta, cujo significado nunca vai muito além do procedimento. A verdade é que Cabral terminou por ser mais ou menos onipresente, nas últimas décadas. Vi tantas vezes glosado o tema da pedra ou da faca, que certa vez me referi ao grande contingente de imitadores ou admiradores incorporantes como “o clã da pedra”. E sinceramente creio que todo poeta contemporâneo deveria sentir-se envergonhado de glosar pela milésima vez os lugares preferenciais da poesia de Cabral. Também me parece verdadeiro que a poesia concreta teve um papel importante na condenação ao lirismo, que é exorcismado brandindo um anátema tão vazio quanto “rigor”, que é pedra de toque de elogio: “confessionalismo”.
Como crítico, sempre tentei compreender o movimento e a tendência. Já como leitor, leio com algum tédio os protestos contra a poesia lírica, “confessional” ou “visceral”, e também me cansa aquela parte da poesia contemporânea que, em verso prosaico ou prosa entrecortada, abastarda e resume a cartilha da pedra ou do antilirismo. Como leitor, procurava sobretudo, na poesia, um traço de interesse, de dissonância, de novidade marcada pela individualidade. Dizendo de modo brutal, o mais das vezes me surpreendia perguntando-me: o que esse sujeito tem a me dizer, além de propor um elogio da poesia, do poeta, ou mais um artefato verbal desprovido de nervo? O que ele tem a me dizer que já não foi dito melhor pelos seus próceres ou paredros?
Ou seja: houve e há sempre um duplo olhar: o do professor, que analisa e tenta entender, e o do leitor, em busca de conhecimento, prazer e novidade. E este perguntava-me, frequentemente, antes de abandonar o livro ao compromisso do professor: por que eu leria outra manifestação dessa glosa infinita daquilo mesmo que é a doxa universitária no Brasil?
Como leitor, portanto, o que eu buscava (e encontrava aqui e ali, em medida vária) era o pulso da minha época, transmitido por uma sensibilidade individual, única, radicalmente inserida no seu tempo e não mais uma tentativa de corresponder a um desenho histórico ideal, na busca de sedução de um leitor igualmente historizado e ideal.
Boa parte da poesia que tenho lido no Brasil ao longo das últimas décadas é uma poesia que evita o risco. A ironia está em que a poesia de quem mais glosa esse tema (poesia é risco), Augusto de Campos, é a que menos risco corre, pois se compraz na repetição do mote, forjando a exclusão que almeja como defesa justamente contra o não ter nada a dizer. Não é que diz e corre o risco de dizer. Nem que faz algo novo depois de 50 anos, e corre o risco de fazê-lo. Pelo contrário, não diz outra coisa a não ser que corre o risco que se recusa a correr, fossilizada num futuro ainda por vir, ou que teria de ter vindo, mas não veio: o futuro que, vindo, se anula em outro futuro desejado . Nessa seara, o que sempre me impressionou foi, em maior ou menor grau, a negação do presente, em nome do futuro – e a passagem fulminante da projeção do futuro para o lugar almejado no museu. O lugar do futuro do pretérito e do condicional: naquele tempo teríamos feito isto, se tivéssemos as condições; seria muito melhor se nos tivessem ouvido ou nos seguido…
O que interessa ao leitor que sou é exatamente o presente, a apreensão da forma transitória, que pode sumir como a fumaça no ar, ou permanecer como um rastro ou um monumento. Presente que só pode ser conquistado, eu acho, por meio de uma personalidade forte, disposta a correr os verdadeiros riscos, que são a falta de certezas e a valorização da experiência, não no sentido “científico” de conseguir algo que almeja ser regra no futuro, mas no sentido de tateio do que é mais obscuro e pessoal, e que resiste às narrativas de prestígio. Ou seja, não experiência no sentido científico – principalmente porque em arte, nos nossos dias, a reprodução do procedimento, em vez de confirmar o seu valor e assim agregar esse valor à nova obra, produz o efeito contrário, pois a reprodução das “conquistas” soa fatalmente como rebaixamento, percebe-se como perda de impulso, conformação ou mesmo banalização -, mas “experiência” no sentido vulgar, como quando alguém diz “minha experiência neste assunto”, ou “é um homem muito experiente”. E essa é a forma da lírica, tal como eu a valorizo e vivencio em Bandeira, em Drummond, em Gullar, e em poucos – pouquíssimos, eu diria – poetas contemporâneos.
Sobre um deles escrevi recentemente uma nota. E pretendo escrever algo mais elaborado. Trata-se de Thomaz Albornoz Neves, que publicou em edição de autor um livro estimulante (“À espera de um igual”), que recusa os esquemas usuais de interpretação, e desafia duramente o leitor acostumado a eles. Trata-se de uma reunião de livros ou conjuntos bastante diversos um do outro, mas cujo sentido é recolhido, interpretado e re-significado, pelo livro final, de 2018, intitulado “No Capuz do Olhar”. Começa este em primeira pessoa: “Deixei de ser poeta aos 33 anos, em 1996”. O poema seguinte ainda mantém o registro: “Nasci em Sant’Anna do Livramento”, mas termina com a proposição que dará a inquieta alternância de ponto de vista que virá: “Ao ler-me, ouço um estranho / que ao ser lembrado me oculta diante de quem o recorda”. O que vem a seguir é uma série de 34 poemas ou seções de um único poema (no total, são 36), em que o poeta fala de si mesmo em terceira pessoa, narra sua história, os acidentes e incidentes da vida e da obra, analisa-se, comenta-se, desdobra-se usando a primeira pessoa para falar de um ele, mas fazendo às vezes um giro rápido, projetando-se outra vez como um “eu” na matéria narrada. Como neste final do poema 19: “Amanhecendo, sai sem ser visto / Lembro também a claridade dura […]”. Temos aí um pouco de tudo: retrato do artista quando jovem, relato algo heroico algo despiciendo, flashes de vida que valem como símbolos, reflexão metapoética, autoanálise. Aqui não há cedência ao usual, glosa da preguiça, tributo aos patriarcas. É um discurso áspero, mas ao mesmo tempo próximo, como a voz de alguém que nos falasse com os dois pés fincados na terra do presente – aquela mesma que nos foge por entre as palavras e os hábitos herdados, aquela que temos tanta dificuldade de entrever, que dirá de conquistar. Aqui a pergunta de por que ele resolveu dizer isso em forma de poesia sequer se coloca. Impõe-se a voz poética como uma espécie de fatalidade.
Outro livro que muito me impressionou foi Etiópia, de Francesca Angiolillo. Por motivos diferentes. O livro de Francesca é uma espécie de prosa entrecortada. Vale-se do recurso mais comum na poesia contemporânea, que é dispor frases em linhas de corte variado: aqui se interrompe o sintagma, separando o adjetivo do substantivo, ali uma preposição do termo seguinte, deixando-a solta no ar, ali se obedece ao recorte natural da entonação. Entretanto, à medida que se vai lendo, impõe-se sobre o ritmo fragmentado do verso de recorte aparentemente aleatório o ritmo das frases, da elocução, pois são poemas que pedem a leitura em voz alta.
A vulgata do verso contemporâneo funciona aqui como empecilho e estímulo à reconstrução do ritmo da voz, e nos leva a ler vorazmente, não apenas pela narrativa implícita, mas pela busca justamente das cadências que se afirmam e negam, glosando as variações dos versos mais conhecidos. Por fim, a segunda parte se articula em diálogo, com notável combinação de versos longos na primeira voz e breves na segunda, que traz inclusive alguma espacialização significativa.
Mas durante a leitura e depois houve algo que me chamou a atenção: embora o livro me parecesse poderoso, não me lembrava de nenhuma passagem particular; quando pensei em recolher algumas partes para mostrar as qualidades que me parecem tão evidentes no conjunto, hesitei. Qualquer parte parecia incapaz de reproduzir sequer um pouco da densidade do conjunto. Um fragmento, isolado do fluxo, corria o perigo de parecer uma descrição banal; outro, com seu tom levemente bíblico, não parecia funcionar sozinho; um terceiro, de pendor autobiográfico, corria o risco de se reduzir a essa dimensão. E foi então que me dei conta da grande arte: é o sopro lírico, essa voz que imprime seu registro e seu tom logo nos primeiros poemas, que importa. Ela não é apreensível em pequenos segmentos, nem mesmo em trechos ou poema isolados. É um fluxo contínuo em que a memória e o ritmo da evocação vão fazendo fixar-se em imagens que, sem o sentido de sequência, perdem muito da força, e do brilho sem exagero, mas intenso, que caracteriza o conjunto.
Sei que escrevendo assim, levado pelas emoções da lembrança da leitura em mais uma noite insone, não construo um artigo, nem uma resenha. Mas me contento com o registro de uma experiência, desse fulgor de encontro, e com a celebração desses dois textos que me trazem de novo, na contemporaneidade, aquele susto que, para alguns temperamentos, conduz à busca de entendimento, ao gesto crítico.
 
II
Recebi há dois ou três dias, pelo correio, o livro “À espera de um igual”, que reúne a poesia de Thomaz Albornoz Neves, de 1985 a 2018. É um livro bem feito, bem diagramado e em bom papel, de capa dura, que acaba de ser publicado em Sant’Ana do Livramento, pela TAN ed.
Confesso que não conheço a chancela. O colofão indica que se trata de editora recém-criada. Talvez esse belo volume, de que se tiraram 500 exemplares numerados, seja sua primeira publicação.
Não me lembro como travei contato com o autor. Mas sempre me pareceu uma figura algo enigmática.
Seu ponto de vista sobre poesia – e creio que falamos de haicai – sempre me pareceu interessante, inovador, provocador. Mas de concreto, nada me lembro do que possamos ter conversado por mensagem ou nas velhas listas de discussão, num tempo pré-internet, ainda no domínio do e-mail. Se é que a memória não falha. Em certa época, soube que andava pelo exterior. Em outra, que vivia como jogador profissional de golfe. Não vem ao caso aqui, embora seja largamente tematizada no livro, a sua biografia. É matéria de poesia, não de crítica. Mas de alguma forma importa, porque é um poeta que andou um tanto à margem do sistema literário, apesar de ter dois livros publicados. E o estranhamento da poesia e da carreira literária deve estar na origem do título de um artigo que lhe dedicou Ricardo Vieira Lima: “Um poeta fora dos eixos”.
Pelo Facebook, mantivemos o contato esporádico. Até que há poucos dias, tendo eu postado algo sobre o Padre Joaquim Guerra e sua proposição ou fantasia de que a linguagem divina estava (por assim dizer) congelada ou guardada nos étimos chineses, voltamos a nos falar. Perguntei-lhe pela poesia, de que eu conhecia pouco, mas sempre me causara boa impressão. E foi então que anunciou a publicação da sua obra reunida, que poucos dias depois recebi em casa.
Tenho aqui à minha frente o exemplar número 35, que li inteiro no dia em que chegou. Como a leitura foi acompanhada de uma garrafa de bom vinho, reli depois a parte que correspondia ao terço final da garrafa, para ver se o meu entusiasmo tinha fonte segura, não só líquida e derramante.
Em seguida, voltei aos poemas do livro, guiado pelas 10 páginas de anotação de leitura – de tópicos que me chamaram a atenção e que, se eu pudesse, desenvolveria depois.
Não sei o que possa dizer nesta crônica, mas seguramente posso afirmar que se trata de uma poesia poderosa, capaz de emocionar, de mover em conjunto a cabeça e o coração – para dizer de modo convencional. A verdade é que o entusiasmo inicial, mesmo temperado com aquele tipo de desconfiança perante o texto que o vício do trato acadêmico acaba por tornar uma segunda natureza, se manteve. Se é que não se ampliou. Ao mesmo tempo, os pontos que não me pareceram tão impressivos permaneceram. E o que incomodava continuou incomodando, embora menos. E mesmo o estranhamento quanto à forma do último livro permaneceu, mas dinamizado agora pela releitura.
Quando comecei a ler, fui, como disse, anotando as impressões brutas – por costume e porque achei desde os primeiros versos que ali tinha algo que valia a pena. Pretendia apenas, como faço sempre, compor ao final uma descrição das minhas reações à leitura. Alinhavar os tópicos, marcar as reações. Para uso nenhum, em geral. Ou, às vezes, para um artigo. Entretanto, ao chegar à última parte do livro, esse projeto meio que foi por água abaixo.
É que o livro que encerra o conjunto, chamado “No capuz do olhar” (datado de 2018), é em boa parte um comentário dos anteriores. Não apenas porque conta a vida do poeta a partir de 1982 e as circunstâncias de escrita, mas porque discute o projeto de cada livro anterior, bem como seus acertos e até mesmo alguma crítica que recebeu ou deixou de receber. Independentemente da discussão sobre o memorialismo, veracidade, testemunho, ficcionalização, o ponto central é: muito do que o poeta disse de si mesmo, desdobrado, era próximo do que eu mesmo, leitor, tinha formulado.
“No capuz do olhar” é um livro estranho. Começa em primeira pessoa: “Deixei de ser poeta aos 33 anos, em 1996”. O poema seguinte ainda mantém o registro: “Nasci em Sant’Anna do Livramento”, mas termina com a proposição que dará a inquieta alternância de ponto de vista que se seguirá: “Ao ler-me, ouço um estranho / que ao ser lembrado me oculta diante de quem o recorda”.
O que vem a seguir é uma série de 34 poemas ou seções de um único poema (no total, são 36), em que o poeta fala de si mesmo em terceira pessoa, narra sua história, os acidentes e incidentes da vida e da obra, analisa-se, comenta-se, desdobra-se usando a primeira pessoa para falar de um ele, mas fazendo às vezes um giro rápido, projetando-se como um “eu” na matéria narrada. Como neste final do poema 19: “Amanhecendo, sai sem ser visto / Lembro também a claridade dura […]”. Temos aí um pouco de tudo: retrato do artista quando jovem, relato algo heroico algo despiciendo, flashes de vida que valem como símbolos, reflexão metapoética, autoanálise.
Sei que, descrevendo assim, ao sabor da crônica o que vi nesse livro, o resultado pode ser hermético. Talvez mesmo desinteressante. O que seria uma pena e uma falha do cronista, porque justamente “No capuz do olhar” é um dos textos mais vivos que tenho lido em anos.
Pretendo ainda, se me ajudar a vontade e me permitir o ânimo destes dias, escrever um texto analítico sobre esse livro que me pareceu, sob vários aspectos, excelente. E gostaria de reproduzir aqui alguns trechos, se isso não fosse prejudicar o próprio livro.
Digo isso porque a matéria é de tal forma amarrada e coesa, que nem mesmo me parece razoável – por conta de “No capuz do olhar” – dizer que temos aqui uma recolha de livros. Com esse fecho, todo o conjunto é redimensionado, refeito, transformado retroativamente. E se eu transcrevesse, por exemplo, a parte 33 (esse número mágico) de “No capuz…”, dificilmente conseguiria que mesmo um leitor atento pudesse sentir de corpo inteiro o pulso épico, a respiração entusiasmada, em que a precisão descritiva de um Hemingway (para citar um autor que admiro pela incrível capacidade de mostrar as coisas objetivamente e chamá-las pelo nome e expô-las em funcionamento) se junta à energia que encontramos em alguns Cantos de Pound, nos quais a velocidade e a composição justapositiva produzem (ao menos para mim) uma espécie de vertigem. Porque o efeito total dessa parte depende também do que veio antes, nesse livro ou nos outros que compõem o volume – por complemento ou contraposição.
Mas se não vou aqui redigir um estudo, nem vou transcrever partes, qual o sentido desse texto? Apenas um: o de fazer a crônica, o registro de algo que ocorre no tempo. E, claro, cumprimentar um poeta que nos surge em plena força, revelando um conjunto de obra quase inédito que impressiona, desafia, deleita e emociona.
Entretanto, para não sair com as mãos abanando, transcrevo trechos pequenos de um dos livros de que gostei bastante.
Trata-se de “Versos para poemas não escritos”. É verdade que nem tudo nesse livro me entusiasmou por igual. Os poemas em terceto, por exemplo, não me parecem versos para poemas não escritos. Talvez possam ser entendidos como haicais, e “não escritos” no sentido que no espírito do haicai se encontra quase sempre a recusa à totalização. Mas são poemas que começam e terminam. Muitos são compostos por justaposição de dois segmentos, e isso sugere que talvez devessem ser lidos como haicais. O fato é que não me impressionaram tanto como haicais, talvez mesmo porque não sejam, nem tenham querido ser. O que nesse conjunto me chamou a atenção foram os fragmentos que se apresentaram mesmo como fragmentos: frases, postulações, imagens que brilham isoladamente, como um disparo rápido de intensa energia. E foi neles e em “No capuz do olhar” que tive os melhores momentos de leitura.
Serão, portanto, alguns desses os que vou transcrever a seguir, como encerramento desta notícia (embora também aqui talvez o efeito dos fragmentos seja menor, perdido o contraste com o que os rodeia e com o que fazem conjunto) .
*
Repara como no musgo orvalhado
o presente transborda
*
O vento vê com a forma das coisas
*
E sardas morenas de pó mascavo
*
Ser contigo o mesmo ar respirado
*
O céu passa em onda sem quebrar
*
Em que giro do céu
some da terra a sombra do abutre?
*
Meu escudo feito de entrega
*
A carícia atrasa a transparência
*
A lesminha na samambaia ordenha o cosmo
*
e as rajadas da via láctea que ninguém vê na brisa
*
Teu silêncio conta a favor das palavras
*
A pele basta para ver no escuro

tan editorial

Idealizada por Thomaz Albornoz Neves, a chancela tan ed. reúne títulos  de autores cisplatinos e afins. São obras de fotografia, arte, poesia, ensaio e relato escritas em português e espanhol (com alguma pitada de portunhol). O empreendimento é solitário, sazonal e sem fins lucrativos. Os livros têm a mesma identidade gráfica e são, na sua maioria, ilustrados com desenhos do editor. A tiragem varia entre 75 e 300 exemplares numerados.