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Raul Sarasola. Um regente do acaso no Braguay

Antes de ser um Reino, um Grupo ou um Espaço, “Braguay” é um conceito originado pela nossa peculiar condição no mapa. Muitos dos que aqui recordam os antigos sabem de senhores uruguaios em Rivera e de brasileiros em Sant’Ana que viviam sem atravessar ao outro lado. Hoje, também sabemos, não há mais lados. É tudo uma só geleia, um só redemoinho. Mais que Reino, pois reinos têm territórios, mais que Espaço, pois espaços quando nomeados remetem a limites, Braguay fez-me lembrar de um capítulo do livro Mil Platôs, aquele que aplica o modelo do rizoma sobre a migração dos idiomas e o modo como os povos, as culturas e os costumes se territorializam e se desterritorializam com mais fluidez em fronteiras porosas como a nossa.

“Braguay”, prossigo eu ouvindo o que penso enquanto estaciono o Opala, bem pode ser um dos nomes para o nosso volátil platô particular. E talvez não se confunda com o “Riveramento” usado pelo caro poeta Michel Croz para unir as duas cidades, nem com aqueles esforços um tanto artificiais de impor uma identidade mista por parte da área de estudos linguísticos fronteiriços: o portunhol.

Assim caminho contra o vento sul da rua dos Andradas distraído, pensando essas e outras banalidades, na fria manhã da última quinta-feira para visitar no Espaço Braguay a mostra “Por una cabeza” do meu amigo Raúl Sarasola. Aurélio Guerra Neto, tradutor brasileiro de Mil Platôs para a editora 34, fica na casa da família a duas quadras daqui quando vem à Sant’Ana. Onde há vizinhanças, há pontos de fuga… divago. Lélinho talvez não concordasse comigo se eu lhe dissesse que naquele tratado a filosofia de Deleuze e Guattari abusa da poesia. Muita beleza, imagens demais, para explorar um conceito. Não, é provável que não concordasse, sigo variando diante da porta de vidro da galeria de arte.

Raúl Sarasola é um artista polifacético. Un buscador, nas suas próprias palavras. Soy varios, no me sale ser solo uno. Se em um momento da vida o temos em Montevidéu entrevistando a Bioy Casares ou a Haroldo de Campos no programa “Aerograma” para a rádio Sodre, em outro desafia a gravidade equilibrando discos de pedra lisa nas correntezas das sangas rasas do Vale do Lunarejo. De acordo com o folheto, Raúl trabalha com grafite, piche, vinagre para extrair o óxido, colagens, material orgânico, chapas, latas e arame aplicados em suportes de papel, metal, madeira ou tela. Mas, apesar dessa ampla gama de materiais e formatos, o que se nota nem bem se entra é a coesão da mostra. Há linguagem própria, personalidade, quero dizer. E estilo. Em várias obras, como “A musa” ou a série das faces, a impressão é que Sarasola entrega ao material o destino da peça, que o metal, o acrílico e mesmo o piche conduzem a sua intenção. A tal ponto que antes da figura, antes da “Cabeza”, o que se tem é abstrato. A figura sempre parece surgir do fim, acrescentada como um remate secundário à forma, às cores e à composição. O sopro vem de fora, da tinta para o pintor, do ferro para o escultor. E ele, sendo ambos, é instrumento de ambos. Sua habilidade está inteira a serviço da intuição numa espécie de regência do acaso. Digo isto também porque muitos dos suportes usados são frutos de coletas, achados na sucata onde o processo começa. Al azar, no caos das coisas.

Conheci por fotografias algumas dessas criações e conversamos um pouco sobre elas no La playa, seu local bar na esquina da Figueroa com a calle Uruguay. Vê-las soltas, esparsas, no instagran é uma coisa. Vê-las na mostra, outra. Porque diante da instalação, e lá venho eu de novo com as minhas associações literárias, o trabalho dos galeristas (Mª Luisa de Leonardis dos Santos e Leonidas Bayo) se assemelha em muito ao do editor que recebe poemas soltos para, com eles, criar as grafias, os espaços em branco e o design de um livro. Outra arte.

tan editorial

Idealizada por Thomaz Albornoz Neves, a chancela tan ed. reúne títulos  de autores cisplatinos e afins. São obras de fotografia, arte, poesia, ensaio e relato escritas em português e espanhol (com alguma pitada de portunhol). O empreendimento é solitário, sazonal e sem fins lucrativos. Os livros têm a mesma identidade gráfica e são, na sua maioria, ilustrados com desenhos do editor. A tiragem varia entre 75 e 300 exemplares numerados.