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Sobre “La Minuana”

Por Simone Sauressig

Um dos maiores desafios para quem escreve é a tradução da voz oral para a Literatura. Não se trata de transcrição: cada fala é uma melodia particular, feita não só do som da palavra, mas de gestos e silêncios repletos de significados e impossíveis de serem trazidos em sua totalidade para a palavra escrita. Acentuações, entonações, ruídos que não são palavras, mas tem sentido, sobretudo entre grupos familiares ou clãs, são coisas irreproduzíveis. Todo escritor sabe disso.

Mas não custa tentar, não é?

O resultado destas tentativas, muitas vezes, é o erro. É comum ver a fala do povo, com suas espontaneidades e expressões, a melodia única da forma não ortodoxa do idioma, associada a personagens broncos, tratados sem profundidade no texto ou associados a uma moral duvidosa. São deslizes que muitas vezes refletem um preconceito que o autor nem sabia que possuía.

Felizmente, contudo, quando o autor acerta, o resultado é brilhante. O texto passa a refletir formas de pensar e de agir, traz para a página a impressa a poesia oral e improvisada dos povos, sobretudo quando esse grupo humano é fronteiriço e mescla idiomas, criando uma linguagem única, as melodias das falas se misturando em uma forma muito pessoal. É o desafio de trazer para a Literatura a sinfonia do popular, acrescentando um grau de dificuldade, que é o da mescla, da boa e velha, mistura.

Tal é a primeira impressão que “La Minuana” de Lucio de Carvalho, publicado pela tan editora de Sant’Ana do Livramento neste mesmo ano de 2023. Com uma capa sóbria e elegante, o livro de apenas 96 páginas tem como abertura um Prólogo, talvez um pouco extenso para esta leitora que gosta de ir direto ao que interessa – e nesse caso, o que interessa é a história de um desertor que abandona as batalhas da Guerra do Paraguai e se envolve com um grupo de indígenas em busca de paz para uma alma mergulhada no terror da morte matada e buscada. Quem lhe poderia dar paz, segundo lhe disseram, é uma das componentes do grupo, La Minuana de nome, porque aquilo que nós entendemos por nome, Maria, ou Augusta, ou Raimunda que fosse, ela não tem. O protagonista a encontra ardendo em febre por conta de uma picada de cobra, mas milagrosamente a chegada do “cristiano” traz, também, a recuperação da mulher. É o encontro de duas raças, uma em processo de desaparição e outra que ainda não se formou nestes pagos rio-grandenses, mas que vai se criando. Unido ao grupo, o paisano segue os caminhos e a vida dura desses remanescentes de uma das últimas etnias originárias do Pampa, seguindo trilhas, vencendo coxilhas e, de vez em quando encontrando aquele recorte de pedras que os homens brancos usam para delinear seu espaço: as cercas. Das cercas para os povoados que um dia serão cidades, é ao mesmo tempo um passo longo para quem acredita na grandiosidade da civilização atual, e um tropeço, para quem sabe que somos parte de algo maior que nós e não seus proprietários.

A história do paisano e de La Minuana é um romance de poucas páginas, para quem conta apenas os números, porém gigantesca se abrangermos a vida de cada personagem. Escrito em primeira pessoa, o texto que Carvalho explora não é castelhano nem português, mas essa mescla tão nossa, o “portunhol”, no qual esgueiram-se expressões em tupi e no idioma charrua. Desafiante para o leitor? Sem dúvida alguma. Mas o autor não nos abandona e eventualmente palavras e expressões menos conhecidas são esclarecidas com notas de pé de página. Observo que muita gente não gosta das tais notas, mas é sempre bom lembrar que elas não são de leitura obrigatória, como parece ser para alguns leitores.

O livro se encerra com uma lista de referências bibliográficas, uma breve biografia do autor e uma bem-vinda lista de bibliografia selecionada, para quem quiser expandir suas leituras nesse universo sem fronteiras que foi o Pampa dos séculos anteriores ao afã de propriedade.

Por fim, não posso terminar sem lembrar ao leitor um detalhe importante: sendo um texto calcado na oralidade, vale uma leitura em voz alta para saborear os acordes melodiosos que só as fronteiras dos povos e dos idiomas são capazes de inventar. E para quem ficou na dúvida, um último comentário: não se fiem de que “La Minuana” tem como única qualidade o desafio textual. Dois parágrafos me bastaram para me fazer mergulhar nessa história e seguir sua torrente até a última página, adentrando um Pampa selvagem e livre, resgatado das brumas do tempo pela imaginação de seu autor.

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Idealizada por Thomaz Albornoz Neves, a chancela tan ed. reúne títulos  de autores cisplatinos e afins. São obras de fotografia, arte, poesia, ensaio e relato escritas em português e espanhol (com alguma pitada de portunhol). O empreendimento é solitário, sazonal e sem fins lucrativos. Os livros têm a mesma identidade gráfica e são, na sua maioria, ilustrados com desenhos do editor. A tiragem varia entre 75 e 300 exemplares numerados.