Na sexta seção de À espera de um igual, poesia reunida de Thomaz Albornoz Neves, talvez se encontre a melhor explanação biográfica que se poderia fazer a seu respeito. Essa no caso foi realizada por ele próprio, mas numa forma inabitual, em versos que parecem emendados ao longo da sua vida, que ganhou forma final apenas em 2018, num grande e único poema intitulado No capuz do olhar.
Mas há forma alternativa de abordar o poeta, forma mais objetiva e, para tanto, é suficiente dizer, além do seu nome, que nasceu em 1963, em Sant’Ana do Livramento, precisamente na Coxilha Negra; esteve vivendo por um tempo no Rio de Janeiro onde formou-se em Direito e realizou o seu mestrado em Letras (historiografia literária) escrevendo a biografia de Dante Milano, todavia sem prosseguir na carreira acadêmica e nem na jurídica; dali esteve em Londres e na Itália, iniciou e abandonou estudos de Cinema em Roma, regressando dali ao vizinho Uruguai e depois novamente em sua cidade natal, Sant’Ana do Livramento.
Foi ao fim deste seu périplo que o conheci, justamente no momento em que Thomaz retomou e reorganizou o seu trabalho poético de uma vida: o autoral À espera de um igual e os dois volumes de tradução Oriente e 24 Verbetes (Ocidente). Coincidentemente, o ano do começo da pandemia do coronavírus proporcionou que então eu divulgasse na revista Sepé, que editava, os lançamentos que ele fez pelas próprias artes gráficas e editoriais que forjou com a sua TAN Editorial.
Talvez eu tenha sido dos primeiros a conhecer os seus livros quando ainda no prelo. Inclusive publiquei na Sepé uma anotação a respeito da leitura de À espera de um igual. Anotação expressa para um volume caprichoso de uma poesia elaborada em mais de trinta anos, mas na qual reconheci (creio que com alguma precisão) o sotaque da fronteira e referências naturais e culturais comuns. Sant’Ana e Bagé (onde nasci), afinal, são próximas mais que geograficamente, e o gosto em comum pela poesia indicava-me ainda mais proximidade.
As questões a seguir foram formuladas, reformuladas, respondidas e revisadas a quatro mãos. No lugar de um perfil, fizemos um debate, uma charla como dizem os vizinhos uruguaios, que pensamos que pode dar uma noção tanto do poeta quanto da pessoa do entrevistado.
Texto: Lúcio Carvalho
Parêntese: Tenho aqui comigo os três volumes, dos oito até agora produzidos por meio da TAN Editorial, que levam teu nome na capa. Vejo em À espera de um igual que é uma trajetória que se inicia em 1985. Se nasceste em 1963, posso concluir que teus poemas começam já ao fim da adolescência/início da adultez. Antes disso, não te ocorreu a poesia? É meio um lugar comum o espírito adolescente se expressar poeticamente, mas o poeta Thomaz já nasce com a voz adulta, é isso? Ou a gênese do poeta tem também seu terço impublicável? Quer dizer, em que momento é que o Thomaz se anima a colocar o nome junto aos versos? E como isso se deu?
Thomaz Albornoz Neves: Fui um rapaz largado e precoce. Aos treze, já conhecia a zona, dirigia de madrugada e andava com os mais velhos. Aos dezessete, fazia o Unificado e morava na esquina da João Manuel com a rua da Praia. Aos dezoito estava em Copacabana por causa da faculdade. Quer dizer, comecei a viver sozinho muito cedo. Eu era meio bicho, sem estrutura nenhuma para entender as minhas experiências. Em casa, a biblioteca da família me deu uma formação romântica que, por alguma razão, fez com que eu me visse pelo mundo com o mesmo desterro do Rafael Alberti em Punta del Este, de Neruda escrevendo Residencia en la Tierra no Ceilão, ou como um Jivago fronteiriço fazendo versos à sua Lara no meio do pampa branqueado pela geada. Comecei a escrever creio que com dezesseis anos. Nessa época, conheci uma menina que me olhou da mesma forma como eu me via. A realidade ficou de repente tão mais viva que eu pensei, numa noite, voltando para casa bem na frente da biblioteca municipal santanense, eu pensei que já podia morrer, que não haveria na vida algo maior do que aquilo, tão completo eu estava. Como segui vivo, escrevi um soneto quebrado tentando expressar o meu sentimento. Lembro que a pedra de toque do soneto era todo o céu do campo entrando na lua para expressar como em um peito tão pequeno cabia emoção tão grande. Essa foi a gênese de Renée, uma plaquette com 20 poemas impressa em uma gráfica da cidade cinco anos depois, em 1985. No entanto, para responder diretamente à pergunta, esses poemas foram sendo reescritos até a edição definitiva de À espera de um Igual, trinta e três anos mais tarde. Inclusive esse título é um verso retirado de um poema desse livro.
A cortina ondula com o mar
Ao luar pareces
o último da espécie à espera de um igual
Então não sei
se é outro momento mais amplo
que a margem do tempo
A cena se desacorrenta
e a cada gesto surges de onde estás
Nos vejo pela primeira vez novamente
Algo em cada um já é perfeito
A presença
Ou seja, isso quer dizer que, se fui precoce na vida ao ponto de perder a infância, meu amadurecimento intelectual e emocional foi muito lento. Alcancei certa maturidade poética depois dos vinte e tantos largos anos, quando já morava fora do Brasil.
Parêntese: Então, se a vida não pode ser reescrita, a poesia, por outro lado, parece que pode. Teus poemas são uma escrita contínua, como a de Herberto Helder, ou o livro encerrou, de fato, sua forma definitiva?
TAN: Foi como Helder enquanto escrevia e reescrevia aqueles poemas. Faz quase quatro anos que deixou de ser. A forma é definitiva, aquele poeta terminou ali. Não sei se vou ser capaz de me reinventar e escrever outros poemas. Se for, o poeta será diferente, a poesia terá outra natureza.
Parêntese: Como teus dois outros livros pela TAN de traduções (24 Verbetes é acompanhado por ensaios biográficos dos poetas traduzidos), pode-se presumir que a escrita nasce pelo menos ao mesmo tempo da leitura de poesia. Quando é que a poesia apareceu como forma expressiva para o leitor? Estou aqui não pensando na obra final de tradutor, mas no poeta enquanto leitor, isto é, me interessa saber menos influências do que inspiração pessoal. Eu insisto porque, embora minha primeira leitura consciente de poesia tenha sido Casimiro de Abreu, foi a leitura de Fernando Pessoa, em torno dos catorze anos, que me descortinou a possibilidade literária da poesia, além, claro, de influências diretas de amigos, etc. Dê-nos os nomes, Thomaz, de quem te desencaminhou para a poesia…
TAN: Nunca tive pretensão literária. Naquele momento a poesia para mim era decorrência de uma epifania, primeiro vivida e depois revivida através da palavra. No início, a procurava também nos versos dos outros para entender como uma experiência determinada -uma iluminação- era transmitida. Como em Vacilation IV do Yeats, por exemplo: My body of a sudden blazed;/ And twenty minutes more or less / It seemed, so great my happiness, / That I was blessed and could bless… Poderia citar muitos outros, claro. A poesia foi um meio, um instrumento, para sondar o seu próprio mistério, que é o mesmo da existência. O mundo dos homens, as escolas, o prestígio, não têm nada com isso. Dirás talvez que estou sendo vago ou desdenhoso, mas o fato é que a cultura, a tradição, mesmo a língua portuguesa sempre me foram indiferentes, secundárias. A poesia é uma só em qualquer idioma. Se fores ler minhas traduções de poesia chinesa e japonesa clássicas (Oriente) ou os pequenos ensaios e traduções de poesia ocidental (24 Verbetes) verás que a minha relação com a poesia é estritamente espiritual. Aquelas foram parte das minhas influências. Agora, enquanto explorava o meu próprio universo existencial, me interessei por todo tipo de poesia e de poeta, sem discriminar o engajado, o lírico, o esteta, o clássico ou o vanguardista. Me fiz leitor sem preconceitos. Sobre as primeiras influências não tenho memória de poetas, nem de obras, nem de poemas. Não me interessava a biografia e a crítica, só estrofes ou versos soltos. Tenho afinidade e maior interesse na poesia solar, fragmentos de Hölderlin, de Éluard, de Lorca, de Darío, de Pound, de Emily Dickinson, de Cecília Meirelles, de Sophia de Mello Breyner Andresen. Ler Wang Wei, traduzir Wang Wei é uma experiência sensorial única. Já quanto aos oceânicos, nem tanto. Maiakovski, Whitman, Borges, Eliot, Pessoa me deixavam mudo. São tão avassaladores que se tornaram em mim o contrário do adágio de Emerson (poetry springs from poetry).
Parêntese: Queres me dizer que foi uma busca/encontro espontâneo, é isso? Nunca tiveste um plano de leitura? Um itinerário por percorrer?
TAN: Não, nunca projetei nada. Em dado momento, depois de O Sono e de Sol sem Imagem, aquela minha ideia de criar talismãs verbais se esgotou. Eu queria que cada poema tivesse o poder de revelar um mundo novo, outra forma de ver a realidade. E penso que, em certa medida, alguns versos desses livros conseguem isso. O esgotamento me levou a escrever sobre o que não pode ser nomeado, o silêncio em si mesmo, que é o Exílio, o universo da poesia sem a palavra. Uma impossibilidade, claro. Quero dizer que fui sendo levado pela linguagem. Daí a Versos para Poemas não Escritos, que é a dissolução da forma a O Capuz do Olhar existe um itinerário interior, mas feito pelo próximo passo, não de antemão.
Parêntese: E o cinema? Em que estado se encontram e como se poderia conhecer tuas produções? Pensa em retomar a atividade de alguma forma?
TAN: O cinema foi uma tentativa malograda de viver menos só, de criar em grupo. Do que fiz acredito que nada presta. Me resta escrever um documentário sobre o fracasso usando as imagens dos curtas e dos documentários como pano de fundo. Algo sobre fazer audiovisual no início dos anos 90 por aqui. Como era aquilo. Vou acabar falando sobre a incompatibilidade entre a imagem vista e a criada pela palavra. A redundância do Tarkovsky. Preferi seguir com o poema. Não tem produção, Embrafilme, lei Rouanet.
Parêntese: Teu trabalho como tradutor e ensaísta revela sobretudo um grande leitor. Comparativamente aos teus anos de formação, acredita que lês mais agora ou antes? E do que leste antes, o que te parece insubstituível, incontornável? E do que é produzido atualmente, o que aprecia?
TAN: Não sei. Sou hoje um leitor diferente do que fui. Nesse sentido, renovei minha biblioteca através de mim. São os mesmos livros, mas o olhar mudou. Minha formação é contemporânea. Digo, li os principais poetas dos últimos duzentos anos. Traduzi alguns deles, essenciais para o leitor que eu fui: Montale, Brodsky, Ashbery, Heaney, Martinson. Faltaram Yeats, Milosz, Herbert. Devo ter esgotado as novidades bombardeadas pela sucessão das vanguardas. Cheguei no pós-modernismo, nos americanos. Já não sei bem como acompanhar a enorme produção atual. Em poesia, quase sempre, é o tempo, a longa duração, que decide. De modo que mais que a produção atual, me interessam os clássicos que não li. E o problema dos clássicos, claro está, é o arcaísmo da maioria das traduções, o que o Odorico faz com Virgílio nos leva a estudar latim… Quando terminar o projeto editorial da TAN, no final do ano, é para onde provavelmente eu me dirija. E a Hardy, a Pope, a Dryden e a Crabbe. E a Shakespeare e a Dante. Tenho lido sobre política, a ascensão do fascismo me levou a estudar os conservadores, nada melhor que ler um Scruton para reforçar o humanismo. E a filosofia oriental, a não-dualidade, a ressonância dos campos mórficos, tanta coisa… Existem riquezas me esperando em um livro chamado Eu sou Isto, do Nisargadatta Maharaj. É isso, tudo junto e misturado.
Parêntese: Essa noção de contemporaneidade é bastante larga, mas eu a compreendo e concordo contigo. Os 24 Verbetes são praticamente um curso de leitura poética, não? Pensando em mim mesmo, que, apesar de nascido em 1971, também comecei a ler e escrever poesia nessa mesma época, década de 80, me permito me sentir ainda mais contemporâneo. Algo que parecemos compartilhar com os que viveram a angústia do fin de siècle. Diz para nós, então, para finalizar, qual tua impressão sobre a sobrevivência da poesia na era tecnológica. Quem vier depois de nós ainda saberá ler/reconhecer boa poesia?
TAN: Os 24 Verbetes são 24 subterfúgios para que eu pudesse dar a ver a versão de poemas que não estão em domínio público. Não pude publicar as traduções, só uma pequena amostra delas seguida de informações biográficas ao alcance de qualquer googleada na rede. O que dá algum valor aos ensaios são os parágrafos em que opino sobre as relações entre o estilo e a época, o propósito e o talento, a ética e a arte em cada autor. E, talvez, a forma leve e acessível da escrita. Indagas a um cara que vai estudar latim para ler Virgílio sobre a sobrevivência da poesia na era tecnológica… Eu não tenho a menor dúvida que a poesia seguirá existindo. Enquanto houver linguagem, haverá poema. Brodsky afirmava que a língua é superior à História por resistir a qualquer tipo de variável civilizatória e que a missão de conservar o idioma vivo cabe aos poetas. É agradável concordar com ele. Ao menos nisso.