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Poesia na época da técnica, por Ezra Pereira

Para o Thomaz Albornoz Neves, com uma vênia

«E porque a poesia, não canso de insistir, é anterior ao meio, encontrará um caminho nele»

“Senecio” — Paul Klee

I

A poesia (= o poema) não é anterior ao meio se por meio entendermos medium. O logos (poético, apofântico ou cotidiano) é o medium, assim como a água é o medium para o peixe, seu meio-ambiente, seu mundo (≠ cosmos). Ou seja, o logos é o medium do pensamento, o medium do homem.

E a poesia (como caso extremo ou nascituro do logos) não é anterior ao medium também no sentido de o logos ser sempre organon, mesmo se em poesia, o tempo de um instante, essa natureza instrumental do logos aparece em sua glória própria como fim em si mesma (uma epoche teorética, contemplativa, da utilidade).

A nossa é a época da técnica e não só das massas ou do capital. Ou seja, se por um lado, o logos é o medium do homem, por outro lado, na nossa época, a técnica está se revelando (um brilho, porventura, tenebroso, ofuscante) como medium do homem. Ela não é mais mero instrumento, utensílio. Assim, a técnica é o medium do logos e é, por conseguinte, o medium da poesia. O mundo humano que o poeta habita é um mundo técnico (≠ cosmos).

Até que ponto, então, a técnica pode absorver o logos talvez seja uma pergunta para a qual ainda não há resposta. Que o logos em sua potência (ou impotência) máxima, a poesia, possa resistir à técnica não é uma evidência. Ou seja, nada garante a priori que a poesia encontre um caminho em meio ao meio onde está. O falante (poeta ou não) não pode pular para fora da língua, tal como o homem não pode pular para fora da terra e do mundo (técnico) em que habita. Tendo aprendido a falar, tudo o que o homem faz, pensa ou sente está tocado, colorido, por esse fenômeno, esse acontecimento (originário): a fala, a língua.

O que pode então significar poesia na época da técnica talvez seja uma pergunta para qual ainda não há resposta. Não sabemos se em algum ponto técnica, logos e poesia (≠ poema) coincidirão (ou coincidiram). A questão metafísica mais profunda é a de saber se a técnica é o destino do homem e se a destruição é o destino da técnica.

«[…] dichterisch wohnet der Mensch auf dieser Erde», «poeticamente habita o homem esta terra»: este enigma continua a pedir decifração.

II

Talvez a poesia seja anterior ao meio, mas não no sentido de poema, que é (etimologicamente) um fabricado, um produzido, um feito (particípios passados dos verbos fabricar, produzir, fazer). E é, portanto, posterior. A poesia, enquanto poiesis, é anterior ao meio no sentido (não-cronológico, mas categorial) de fabricação, de produção, de feitura. Neste sentido, a poesia é princípio. E é, portanto, anterior (mesmo que, eventualmente, se dê em simultâneo no tempo). Ela encontrará caminhos em meio ao meio (técnico) onde está porque ela é fabricação de caminhos, ela toca o mistério do vir-a-ser ou da passagem da não-existência à existência (cf. Simpósio, 205 b-c).

Poder-se-ia então dizer que o poema é um nascido e que a poesia é nascimento. Ou seja, a questão é a de saber até que ponto a poiesis é o paradigma da physis ou vice-versa. Além de saber até que ponto a poeisis é uma potência à altura da physis (que é o problema verdadeiramente decisivo). Que a poiesis seja uma potência superior à physis talvez venha a se revelar como hybris. O que não sabemos é se há ou haverá testemunhas para testemunhar essa revelação. Para o Prometeu de Ésquilo havia uma evidência: τέχνη δ᾽ ἀνάγκης ἀσθενεστέρα μακρῷ, a técnica é muito mais fraca do que a necessidade (v. 514). Talvez a modernidade seja uma época de irreconhecimento, cegueira, insubordinação em relação à necessidade.

III

«A leitura no instagram sequer traz poemas, traz estrofes ou versos. E parece bastar. Toda a pós-produção (recepção crítica, entrevistas, saraus, divulgação especializada) de um poeta parte de fragmentos. E se basta com eles». Estas palavras de Thomas Albornoz Neves (publicação no Facebook do dia 26 de abril de 2023 em que o poeta e editor, jocoso, certeiro, se chama a si mesmo de pré-digital) são inquietantes, um diagnóstico de uma doença por nomear. Talvez essa doença tenha alguma coisa a ver, na nossa querida modernidade, com a perda do todo, com a fragmentação. Já Goethe, no século XVIII, em sua viagem a Itália, se perguntava por que somos nós, modernos, tão dispersos. Estas também eram as inquietações de Nietzsche, leitor de Goethe. Veja-se, por exemplo, o § 221 de “Coisas humanas, coisas demasiado humanas”, em que o filósofo-poeta diz que só ‘isoladamente’ o público desfrutará dos elementos artísticos da obra. Isso não é anódino, ou seja, o público acabará por exigir do artista que ele apresente/represente sua obra de modo fragmentado, isolando os elementos. O faro aguçado de Nietzsche pressentiu que se iria, barbaramente, chafurdar no naturalismo. Ele sabia que os bárbaros já haviam invadido a civilização.

Escute-se as palavras de Paul Bourget, que Nietzsche conhecia e é uma de suas mais desconhecidas referências: «Um estilo de decadência é aquele em que a unidade do livro se decompõe para deixar espaço à independência da página, em que a página se decompõe para deixar espaço à independência da frase e em que a frase se decompõe para deixar espaço à independência da palavra», (“Essais de psychologie contemporaine”, Charles Baudelaire, III). Ao falar do estilo de decadência em Wagner, Nietzsche dirá que a frase (musical) individual se tornou soberana e que a subordinação e coordenação (do todo) se tornaram aleatórias, fortuitas. Nietzsche se pergunta o que caracteriza toda decadência literária. Em palavras análogas às de Bourget, ele responde que a vida, então, não habita mais o todo: «A palavra se torna soberana e pula para fora da frase, a frase se alastra [greift über] e obscurece o sentido da página, a página ganha vida à custa do todo — o todo não é mais um todo […] Em geral, o todo não vive mais: é justaposto, calculado, artificioso [künstlich], um artefato» (“O caso Wagner” § 7).

É notória uma certa afinidade destas observações de Nietzsche (no século XIX) com as inquietações de Thomaz Albornoz Neves (no século XXI): «A questão que se coloca ao poeta agora é como transmitir poesia se o poema existe mais como uma citação de si mesmo, uma referência de uma obra fora do alcance do leitor. Escrever estrofes soltas? Poesia visual? Performática? Sketches? Reels de versos? No máximo séries curtas de insights?». Talvez a questão da transmissão não seja uma questão decisiva para o poeta enquanto poeta, mesmo se essa questão dificilmente possa deixar de afetá-lo. Os problemas que Albornoz Neves levanta precedem a transmissão, tocam o coração do fazer poético ele mesmo, porque tocam o coração do homem da nossa época.

IV

Antes mesmo de dar a conhecer sua obra, de publicá-la, seja através de que meio for, livro, redes sociais ou outro, a dispersão, a fragmentação, além do ensimesmamento da linguagem poética (o poema como «citação de si mesmo») e da inacessibilidade da totalidade da obra (em «O poeta e a crítica», Tsvetaeva chegará a dizer que quem não leu todos os seus versos, não tem o direito de julgar um poeta), já estão presente na hora silenciosa, solitária, em que o poeta ouve os versos ditados e os inscreve no papel (ou noutro suporte qualquer). Esta é a atmosfera em que respiramos — ou perdemos o ar.

Nossa atual dispersão é alarmante porque ela toca a própria palavra, que é aparentada (em sua etimologia grega) ao gesto de colher, recolher, juntar. E toda perturbação da palavra é uma perturbação do homem enquanto tal. Dir-se-ia que o espírito de continuidade nos abandonou. E que a homogeneização planetária não educou nossa sensibilidade para o que é comum, o que liga. É preciso seguir o que se concatena, diria Heráclito (DK B2). Ele que sentiu profundamente a intimidade entre o logos e o xynon. Sempre os homens se mostram desprovidos de entendimento (axynetoi) em relação ao logos verdadeiro (DK B1). O pessimismo heraclitiano é quase inapelável: embora o logos concatene, una, ligue, os muitos (hoi polloi) vivem como se cada um tivesse uma experiência separada, um pensamento ensimesmado (DK B2), eles não conhecem as coisas com que esbarram, representam-nas para si mesmos, têm opiniões acerca delas (DK B17). A eles se aplica o ditado: presentes, estão ausentes (DK B34): mesmo tendo dado ouvidos, parecem surdos, os axunetoi (os Nichtbegreifenden, no alemão, retorcido, do Heidegger de “Einführung in die Metaphysik”). Os homens ignoram que o discernimento é o contínuo, que o pensamento é o comum, que o exercício da faculdade de julgar é o que une no conceito a dispersão do múltiplo: xynon esti pasi to phroneein (DK B113). O pessimismo de Heráclito só não é total pelo que ele nos legou no fragmento B116: a todos os homens é possível conhecer a si mesmo e pensar, discernir, sentir a imediatez (na versão, desconcertante, que Giorgio Colli apresenta de phroneein no terceiro volume da sua “La sapienza greca”). Poderão os leitores de poesia no Instagram, no Facebook, etc. escutar estas palavras, este logos?

V

«Não considero que haja hoje mais concorrência que em outros tempos. Em matéria poética, digo. O gargalo é e sempre foi em gotas. O que me parece diferente é a duração da atenção sobre o que se destaca». Thomaz Albornoz Neves toca aqui noutra questão que anda a par da dispersão: a atenção, ou melhor, a desatenção.

Depois de décadas de rádio e de televisão, é difícil defender que, além daquelas, os computadores e os celulares vieram, hoje, contribuir para a educação da atenção, concentração, do recolhimento. Malebranche ainda pôde falar da atenção como prece natural do espírito (“De la recherche de la vérité”, VI), mas não só o espírito está hoje fora de moda, caído em desuso. A própria ideia de prece parece contrária à razão.

Simone Weil talvez tenha sido, no século XX, quem mais fez justiça à atenção, à qual chamou a forma mais rara e mais pura da generosidade (carta a Joë Bousquet de dia 13 de abril de 1942). Talvez, então, a falta de atenção dos nossos dias revele, segundo esta compreensão de Weil, a profunda falta de generosidade dos nossos dias, sua avareza, que não é só pecuniária.

No “Attente de Dieu” (Lettre IV), Weil conta que se impôs recitar o Pater cada manhã com uma atenção absoluta, a qualquer distração ou amolecimento, mesmo infinitesimal, ela recomeçava até alcançar uma atenção absolutamente pura. Talvez seja esta atenção religiosa que a leitura dum poema pede, exige: recomeçar se a dicção tropeçar numa única sílaba. Mais adiante, Weil escreve que a formação da faculdade da atenção é a verdadeira meta e quase o único interesse do estudo, embora pareça que hoje se ignore isso (e se confunda atenção com esforço muscular). «A atenção consiste em suspender o nosso pensamento, em deixá-lo disponível, vazio e penetrável pelo objeto […] O desprezo é o contrário da atenção». Talvez os muitos leitores de poesia nas redes sociais padeçam, sem saber, de desprezo.

Nas suas «Méditations sur un cadavre», Weil escreve que «é preciso atenção para tomar consciência das realidades, até mesmo das mais simples, e as multidões humanas não prestam atenção». Talvez os media das redes sociais sejam media de multidões. Será que a poesia é hoje coisa de poucos, para poucos? Tal como o pessimismo de Heráclito não é total (todos podem se conhecer a si mesmos e pensar a verdade, sentir a imediatez), apesar desta passagem, Weil acredita que qualquer ser humano pode penetrar no reino da verdade reservada ao gênio, mesmo se suas faculdades naturais forem quase nulas. Para isso é preciso desejar a verdade e fazer um esforço perpétuo de atenção para alcançá-la.

No «La Pesanteur et la Grâce», pode-se até entrever uma estética da atenção (inseparável da ética): «A atenção extrema é o que constitui no homem a faculdade criadora […] O poeta produz o belo pela atenção fixada sobre o real […] O belo é algo a que se pode prestar atenção». Palavras luminosas, apesar do belo, em estética, estar fora de moda. Talvez, então, a leitura de poesia no Instagram, no Facebook e noutras redes sociais seja uma leitura da gravidade e não uma leitura da graça, falta-lhe uma certa qualidade da atenção, que é talvez um sintoma de pobreza erótica, de empobrecimento do desejo, que nenhum voluntarismo poderá substituir: «A atenção está ligada ao desejo. Não à vontade, mas ao desejo. Ou mais exatamente, ao consentimento». A nossa não é uma época de consentimento, de aquiescência, de aceitação.

VI

Após a morte de Deus, a técnica está se tornando o centro aglutinador de toda dispersão, de toda multiplicidade, um novo deus. Resta saber se esse centro está vazio, se o deus é um ídolo. A força centrípeta talvez venha a se revelar como força centrífuga, dispersiva. Rilke e outros românticos acreditaram que a arte e a poesia, enquanto último bastião da religiosidade, poderiam assumir o cargo deixado vazio pela morte de Deus, sentar-se no trono, empunhar o cetro da soberania. Goethe achava que um romântico é um doente.

Continuemos à procura de caminhos. Nós temos de continuar.

*

Ezra Pereira é poeta, filósofo e tradutor, nasceu em Lisboa e vive atualmente em São Paulo.

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Idealizada por Thomaz Albornoz Neves, a chancela tan ed. reúne títulos  de autores cisplatinos e afins. São obras de fotografia, arte, poesia, ensaio e relato escritas em português e espanhol (com alguma pitada de portunhol). O empreendimento é solitário, sazonal e sem fins lucrativos. Os livros têm a mesma identidade gráfica e são, na sua maioria, ilustrados com desenhos do editor. A tiragem varia entre 75 e 300 exemplares numerados.