Resisto ao status dado nas últimas décadas ao portunhol. Embora compreenda perfeitamente o sentimento amoroso que o envolve, não o considero um dialeto em formação, uma língua híbrida ou uma interlíngua usada por uma comunidade específica. O portunhol é um linguajar.
Se estudarmos o processo linguístico dos isolados burgos na Alta Idade Média que formaram o romagnolo e o compararmos, por exemplo, ao napolitano, veremos que apesar de derivarem do latim e do osco-umbro ambos têm identidades diferentes. Idiomas nascem, amadurecem, viajam e se transformam, mas em alguns milênios, não em menos de três séculos. Para ser breve: o vocabulário fronteiriço é mínimo e tomado por corruptelas. A gramática não traz nada de original em relação à sua fonte luso-hispânica. Não há, repito, tempo de cristalização idiomática, nem crescimento da complexidade dialetal, que é contido pela alfabetização.
Mesmo que em regra as línguas desaguem, no caso de Sant’Ana do Livramento e Rivera o encontro é mais aéreo que líquido. Acontece sobre a superfície. É oral, sonoro, com farta corrosão silábica. Daí que resista a ser escrito. Notem que para filosofar, o portunhol carece de interioridade. Só dispõe de refrões, moralejas ou provérbios. Além disso, e apesar de mapas contextuais que ao longo cubram de Artigas ao Chuí e ao largo de Tacuarembó a Bagé, qualquer demarcação de um território demográfico binacional que amplie as margens móveis e porosas da linha divisória é arbitrária.
Ou seja, só com degradação de fonemas, gíria e neologismos não se faz um dialeto ou uma sic interlíngua. Faltam elementos para que o portunhol seja mais que a terna fusão do português mal falado com espanhol contaminado e vice-versa. O que não o torna menos belo. Quem o conhece sabe o quanto ele é único em cada lugar. O quanto é, de certa forma, outra dimensão do lugar. E digo terna por ser suave, com as vogais aspiradas abrandando a rispidez das consoantes.
Quando assisto eventos onde o portunhol é explorado como instrumento de afirmação identitária, entendo a arma ideológica usada contra o sistema de forças sociais que historicamente exclui a periferia cultural por considerá-la menor em significância. Grave preconceito. A vida pulsa da periferia para dentro e reflui (a letargia reacionária dos centros é outro tema interessante, especialmente se polarizarmos Porto Alegre e Montevidéu em relação ao interior gaúcho e uruguaio. Mais sobre isso em qualquer momento).
Movimentos como o Jodido Bushinshe são válidos e legítimos. Mas daí a defender que o portunhol seja considerado patrimônio móvel da humanidade e torná-lo objeto de estudo acadêmico é uma forçação de barra homérica. Senão, imagine o estudante elocubrando uma tese de mestrado onde a teoria inventa o objeto de estudo pelo benefício da bolsa. Dela ao doutor orientador agindo para a criação de uma cadeira de Portunhol no curso de Letras é um passo. Arejemos o orçamento, dirá, o campo de pesquisa é virgem e fértil.
São gestos naturais, de imediata aceitação por parte da política cultural local, ávida por slogans vazios. Não se deve subestimar, portanto, o perigo de transformá-lo em um produto comercial, um gênero artístico, um estilo de comportamento. Pois o que faz o stablishment ao absorver manifestações da cultura popular, senão padronizá-las? Me surpreende não ter surgido ainda o Festival do Portunhol… Gastronomia, enologia, palcos, guitarreadas, declamações e, claro, conferências (charlas)… Tudo bem pasteurizado para o turismo de consumo e o freeshop de bagageio.
Perigo por perigo e pelo que se intui nas ruas, o bombardeio de conteúdos através da Internet ainda não atingiu o linguajar local com intensidade suficiente para diluí-lo. É mais, duvido que um dia o faça. O cover do Pink Floyd que provocou este texto mostra que, como não poderia deixar de ser, a apropriação se dá também em sentido inverso, a partir daqui, em benefício do nosso microsistema.
De resto – e concluo arredondando o argumento -, é também de fácil comprovação o seu parco alcance em qualquer obra literária que pretenda usá-lo como escritura pura ou linguagem exclusiva. Com ler basta. O artifício salta aos olhos e se esgota no segundo poema ou parágrafo, colocando o autor em uma difícil posição diante da autenticidade do seu impulso criativo. Vou além, se for feito um filme falado só com vocabulário portunhol ninguém se comunica. O fronteiriço usa termos em portunhol, mas fala português ou espanhol. Muitas vezes tudo junto e misturado. Funciona melhor no teatro e no espetáculo, como bem nos mostra Chito de Melo, um senhor cantoautor.
Já a inclusão de conteúdo em portunhol nos poemas de Agustin Bisio, Saúl Ibargoyen e Michel Croz ou nas estórias de Arlindo Coitinho, para dar os exemplos mais notórios, terminam por criar riquíssimos retratos da realidade fronteiriça. E o são justamente pelo uso adequado, medido, do nosso demótico regional.
Sei que o assunto toca nervos expostos e, se por um lado sou contra, por outro sou a favor, dependendo do grau que separa o genuíno do falseado, o espontâneo do oportunista. Há esperteza e há arte. E humor.
Então me digam pitchis: – este vídeo não é um show?